Publicado na Le Monde Brasil.
Instrumentalizar [Verbo]: dar instrumentos ou condições para que algo aconteça.
Instrumental [substantivo]: que serve de instrumento; que ajuda a ação.
Houve outro massacre numa favela brasileira. Quase 20 pessoas foram mortas no Complexo do Alemão. Um relatório recente do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), financiado pela Heinrich Böll, afirma que entre 2007 e 2021 “foram realizadas 17.929 operações pela polícia no Rio de Janeiro. Desse total, 593 operações policiais resultaram em massacres, totalizando 2.374 mortes”. Essas mortes não são inevitáveis, razão pela qual o relatório também propõe uma solução – desenvolver ainda mais um “regime democrático”, a fim de limitar legalmente as ações do setor de aplicação da lei. Essa solução, no entanto, desconsidera que, embora evitáveis, essas mortes não são indesejadas, e é justamente por meio do sistema democrático que essas políticas de extermínio e esquemas de impunidade foram implantados.
Desde os anos 1960, o Brasil vive uma dicotomia entre ditadura militar e democracia. Passamos de um regime de direita apoiado pelos EUA para um líder da esquerda carismático, de origem operária, oprimido por esse mesmo regime ditatorial. Agora, para espanto dos que aderiram a essa abordagem política binária, foi o sistema democrático que deu voz e elegeu apoiadores da ditadura. Hoje em dia, acreditar que uma democracia “mais forte” é a solução para a violência policial é como crer que prédios mais altos são a solução para o aumento do nível do mar. Queremos realmente continuar subindo uma estrutura sem abordar as questões fundamentais do racismo, classismo e desrespeito pela vida humana quando ela não beneficia o capitalismo?
As ineficiências da democracia têm sido discutidas desde seu surgimento na Grécia Antiga. Também seria seguro dizer que o exercício filosófico em torno da “democracia” tem sido um empreendimento ocidental. Uma das minhas citações favoritas sobre isso é: “a caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é que ela consiste em uma série de notas de rodapé sobre Platão” (Alfred North Whitehead em Processo e Realidade). Essas notas de rodapé intermináveis são um esforço de colocar os valores europeus, como a democracia, na vanguarda de qualquer leitura sobre a condição humana.
Na academia, falar de filosofia é realmente se referir a um grupo específico de pensadores, de uma época específica – homens brancos do século XIX. Da demografia de pessoas pensadoras mais bem equipadas para teorizar sobre as condições sociopolíticas a que as – moradoras das favelas estão sujeitas, esses homens europeus do século XIX estão no final da lista. E a realidade é que o grupo demográfico que está no topo desta listagem é exatamente aquele que acaba morto, vítima da violência policial. Isso não é por coincidência.
Marielle Franco foi uma pensadora ativa no governo. Sua tese na UFF foi sobre a violência policial nas favelas e como suas operações não funcionam. A solução apresentada no capítulo “Organização popular e possíveis resistências” inclui a palavra “instrumentalização”. Especificamente, para tornar os moradores de favelas instrumentais. Segundo Franco, a solução para combater a violência policial nas favelas está no fortalecimento da consciência de que “a favela deve ser respeitada” pelo governo e seus “agentes de segurança”. Mas não a consciência desses agentes e funcionários do governo — a consciência dos moradores.
Não é do interesse daqueles que estão no poder (o governo e aqueles que o financiam) que os povos marginalizados (moradores de favelas) se tornem instrumentais na sociedade, perseguindo seus próprios objetivos e influenciando políticas. Para a ordem estabelecida, que no Brasil hoje é uma espécie de democracia, é melhor massacrar do que instrumentalizar a favela. Custa menos matar do que reestruturar a sociedade para erradicar a miséria, a pobreza, o racismo e a exploração. A única “justificativa” para esse massacre é que essas pessoas “mereciam” morrer porque eram criminosos ou estavam no lugar errado na hora errada. Obviamente, isso é inaceitável.
Uma das coisas mais inaceitáveis da democracia, porém, é quando ela serve como meio para um segmento instrumentalizado da população buscar o extermínio do “outro”. Os super-representados usam seu poder para erradicar os sub-representados, iniciando um ciclo democrático vicioso onde a cada eleição a oposição fica menor e mais enterrada. E uma coisa é certa, o fim da ditadura militar brasileira não significou o fim da militarização da sociedade brasileira. Isso porque, segundo Marielle Franco, a militarização é representativa de como ganhar dinheiro ainda é mais importante do que proteger vidas humanas. “A luta pela desmilitarização da sociedade, do Estado […] tornou-se prioridade para quem sonha com um mundo onde a vida está acima do lucro.” (UPP, página 135, edição n-1, 2018).
O relatório de massacres policiais de 2022 argumenta que o “volume e a forma de realizar chacinas apontam para um horizonte contrário à democratização”. No entanto, nada sobre o regime democrático “aponta para um horizonte oposto” à militarização.
Não é apenas no setor de segurança pública que se observam vestígios da ditadura militar. Enquanto os valores capitalistas persistirem na sociedade, o mesmo acontecerá com a militarização – haverá a necessidade dela para realizar o extermínio de um segmento pouco “lucrativo” da população. Além disso, esses valores também serão representados na urna. O ‘lucro’ como um conceito abrangente não teria que ser demonizado se não viesse às custas das vidas de tantas pessoas, e não estou convencida de que as eleições estejam equipadas ou projetadas para impedir que isso aconteça. Será através do voto que podemos garantir dignidade a todos? Haverá um político que fará o que precisa ser feito para garantir que cada pessoa tenha um teto sobre a cabeça, comida na barriga e a consciência fortalecida para se tornar “instrumental” na sociedade?
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Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e tradutora. Ela é editora na Gods and Radicals Press e editora-chefe da Plataforma9.
Fabio Teixeira é fotojornalista e documentarista no Rio de Janeiro. Já trabalhou para The Guardian, Folha de São Paulo, Cruz Vermelha internacional, Unicef, entre outros
AVISO DE GATILHO: AS IMAGENS ABAIXO PODEM RETRATAR CORPOS MORTOS.
Fotos de Fábio Teixeira. 21 de julho, Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, Brasil.
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