Escrito por Felipe Lott
Fotografado por Fabio Teixeira
Edição e produção por Mirna Wabi-Sabi
Com o desenvolvimento da Modernidade, o nacionalismo passou a ganhar cada vez mais relevo e a dominar corações e mentes por todo o globo, principalmente a partir da Revolução Estadunidense (1776) e da Revolução Francesa (1789). Antagonizando com o modelo social da Igreja, a Modernidade foi sendo estabelecida a partir de uma concepção naturalista e materialista, isto é, negava-se a instância divina e se afirmava a realidade unicamente por critérios que fossem próprios a esse e exclusivos desse mundo, e não frutos de um além-mundo. Na esteira da decadência das monarquias e da Igreja Católica como as principais instituições a estruturar a vida social europeia em termos políticos e de construção do sentido da realidade, o nacionalismo se tornou a proposta de organização social mais expressiva no mundo ocidental durante o século XIX e XX.
Mais próximo da religião e dos laços familiares do que da ideologia (ANDERSON), o sucesso do nacionalismo nos últimos dois séculos pode ser atribuído a sua maior capacidade em conciliar e sintetizar os valores tradicionais e modernos em uma unidade social coesa. Ao despontar com mais intensidade no século XIX, o nacionalismo se apresentou como a melhor possibilidade de construção de estados viáveis (economia integrada, administração política centralizada e cultura padronizada) para o desenvolvimento do capitalismo (HOBSBAWM 2016; ANDERSON). Localizado especialmente como fenômeno europeu, que, servindo como modelo universal, espraiou-se para o resto do planeta, o nacionalismo serviu como mestre de obra para a construção de um novo mundo talhado para atender as necessidades da grande indústria (HOBSBAWM 2016; BAUER; GELLNER). Nesse sentido, o nacionalismo se mostra como um amálgama entre religião, laços familiares e ideologia, que definiremos aqui como religião civil (HOBSBAWM 2016; ANDERSON).
Como fenômeno eminentemente social, a religião representa estados mentais de uma coletividade e desempenha uma função etiológica que opera como padronizador lógico de determinado grupo, e pode ser vista como a origem do nacionalismo como fenômeno. Ela classifica e divide todo o universo, real e/ou ideal, em dois domínios absolutamente diferentes, separados e excludentes: sagrado e profano. Nesse mundo inteiramente partido, o religioso deve se preocupar em se aproximar do e proteger o domínio do sagrado e se afastar e se defender do reino do profano. Instituindo-se como guardiã e sentinela do sagrado, a religião se configura como a síntese dos ideais de um determinado grupo.
Para alcançar o ideal, o religioso dispõe de duas ferramentas fundamentais, o mito e o rito, que funcionam em conjunto. O primeiro se relaciona com o sentido, enquanto o segundo com a prática. O mito explica o mundo e o rito e aponta um caminho, enquanto o rito representa e relembra o mito e oferece uma técnica de atingir o ideal coletivo. Ao ritualizar o mito em momentos e circunstâncias estabelecidos socialmente, o religioso pode transcender as suas fraquezas e se conectar com uma força que lhe permite superar os desafios do cotidiano (DURKHEIM).
Por civil, compreendemos a esfera política a partir de um sentido laico, que se preocupa com as necessidades de pessoas definidas juridicamente como cidadãs — apartada do domínio religioso. Portanto, a religião civil se apresenta como ferramenta do Estado para se instituir como um ideal, permitindo, por meio da formação e fixação dessas ideias nas mentes dos membros do grupo, garantir a ordem e a harmonia políticas. Longe de ser uma novidade da Modernidade, a religião civil possui profundas raízes na política, especialmente no republicanismo, a ideologia em que o civil (mito) e a cidadania (rito) são figuras centrais.
Para criar a sua religião civil, e destronar esse papel da Igreja Católica, a Modernidade se inspirou na cultura da Grécia e da Roma Antigas, principalmente esta última. Uma das principais referências na construção da religião civil moderna, Cícero já fazia grandes elogios a promoção da religião em Roma realizada por Numa Pompílio, segundo rei da cidade eterna, por favorecer o estabelecimento da paz, da calma, da doçura e da amizade entre os romanos, sequiosos de guerra, utilizando-se de artifícios laicos como os mercados, os jogos, as festas e toda sorte de reuniões para unir os homens em harmonia (capítulos XIII e XIV do livro II de sua Da República, do último século a.C).
O ideal greco-latino como fundamento da religião civil moderna retornou com força a partir do Renascimento, encontrando em Maquiavel o seu principal teórico e defensor. Porém, foi necessário mais alguns séculos para que o golpe definitivo fosse dado pela Revolução Francesa, que conseguiu escantear de vez a Igreja do papel de religião civil por excelência do Ocidente. Influenciada principalmente pelas ideias de Rousseau, presentes no capítulo VIII do livro IV Do contrato social, a religião civil passou a ser concebida como a religião do cidadão, que preconizava o sacrifício pela pátria e o amor as leis sem os vícios da religião (leis simples, em pequeno número, enunciadas com precisão, sem explicações nem comentários).
Fundamentado nessas ideias, o nacionalismo do século XIX era pensado como uma forma de organização social própria para a Europa e os Estados Unidos. Conforme Espanha e Portugal entravam em decadência, Inglaterra, França e Estados Unidos fomentaram intensamente o surgimento do nacionalismo nos territórios coloniais da América Latina, acabando por provocar lutas por independência em toda a região. Ao destronar as colônias das antigas potências ibéricas, Inglaterra, França e Estados Unidos passaram a disputar o posto de nova metrópole desses territórios recém-independentes.
O Brasil não foi diferente e se transformou em uma colônia econômica da Inglaterra, cultural da França e um pouco dos dois dos Estados Unidos. Adentrando velozmente no Brasil, a cultura francesa foi se apropriando do país, configurando-se em cultura legítima. Não apenas as ideias republicanas francesas deitaram profundas raízes em solo nacional, como o próprio positivismo — tratada como uma religião laica — obteve grande êxito em se arraigar na cultura brasileira. Entre os agentes brasileiros a receber mais forte influência da França nessa era, destaca-se o Exército.
Alcançando o proscênio político do Brasil com a Proclamação da República (1889), o Exército se tornou um dos principais agentes a produzir a nova religião civil brasileira que se desenhava com o despojamento da Monarquia em 1889 (CARVALHO 2017). Influenciado pelo positivismo e o republicanismo francês, o Exército representou um braço da França na promoção de sua cultura no Brasil, competindo principalmente com os partidários do liberalismo estadunidense. Principalmente por meio do Exército nacional e da escola pública, o nacionalismo do século XIX infundiu e enraizou a nova religião civil no povo brasileiro.
Como fenômeno religioso, a religião civil também partilha de três elementos fundamentais: (1) a dádiva ou a reciprocidade, (2) o sacrifício e (3) a dívida. A dádiva ou a reciprocidade representa uma relação econômica baseada na moral. Todos os membros de um grupo precisam trocar bens, materiais ou espirituais, na mesma proporção, produzindo uma dinâmica de igualdade percebida como dádiva em uma sociedade religiosa (MAUSS; SAHLINS). O sacrífico representa uma relação social em que todos os membros do grupo oferecem voluntariamente em um ritual o que possuem de melhor à coletividade, objetivando com esta ação conservar a paz e a harmonia sociais e proteger o grupo do mal e do caos (MAUSS & HURBERT). Por fim, a dívida representa uma relação em que pessoas iguais, de fato ou em potencial, fazem trocas que produzem uma desigualdade momentânea entre elas. A dívida existe nesse intervalo de desigualdade entre pessoas iguais de fato ou em potencial. Na religião, os membros de um grupo possuem certa igualdade e/ou semelhança com o plano cósmico, contraindo uma dívida original com o divino ao nascerem (GRAEBER).
Observando o nacionalismo como fenômeno religioso no século XIX e XX, constatamos todo o seu apelo a uma reciprocidade entre cidadãos juridicamente iguais, o que implicava em uma homogeneidade étnica e racial, que deviam realizar constantes sacrifícios pela nação em razão de uma dívida primordial impagável com a sua sociedade de origem. O entendimento da obrigação inalienável dos indivíduos com as suas sociedades de origem, fruto de uma dívida primordial contraída ao nascerem e cobrada pelo Estado, transformou-se em prática corrente e corriqueira, quando não na maior preocupação social na Modernidade.
Essa dívida era cobrada frequentemente por meio do sacrifício da própria vida, dinâmica e mecanismo que se intensificaram vertiginosamente no século XX com a emergência das guerras totais, modalidade de guerra que tinha por objetivo a liquidação total e completa do inimigo (PALACIOS JUNIOR; ANDERSON; HOBSBAWM 1995).
Já na Guerra Fria, a possibilidade de destruição total nuclear reconfigurou o processo de mobilização geral para a liquidação de um inimigo, o que implicou na intensificação da estruturação do nacionalismo em sua forma religiosa. No histórico conflito, tradicionalistas e modernistas (os conservadores e os liberais) encontraram um inimigo em comum, capaz de uni-los contra um mesmo oponente — o socialismo — que começou a ameaçar a partir do século XIX e a assustar de fato a partir da Revolução de Bolchevique de Outubro de 1917. Nesta aliança tática entre tradicionalistas e modernistas contra o socialismo, o nacionalismo se sobressaiu como forma de organização política e cultural durante o século XIX e XX.
Longe de ser um raio em céu azul, o bolsonarismo é um fenômeno recorrente na história do século XIX ao XXI, mudando apenas as suas coordenadas geográficas e especificidades histórico-culturais. Uma das principais fundamentações do bolsonarismo se encontra no militarismo. Para conseguir reverter a imagem negativa que tinha ao longo do século XIX e início do XX, o Exército brasileiro empenhou grandes esforços em uma campanha pela valorização das Forças Armadas e pela infusão de um espírito militarista na sociedade. Entre outras ações, o Exército fundou a Confederação Brasileira de Tiro em 1896, voltada principalmente para aproximar os civis da vida militar, ação que se assemelha a realizada pelo bolsonarismo na última década.
No início da República Brasileira, o principal objetivo dos militares era aprovar o serviço militar obrigatório nas Forças Armadas. Até 1918, o alistamento foi monopolizado pela Guarda Nacional, uma espécie de polícia a serviço do Ministério da Justiça, que alistava os melhores quadros disponíveis para a sua força, principalmente de membros da elite e das classes médias. A partir daquele ano, a Guarda Nacional passou a estar subordinada ao Exército (CARVALHO 2006).
Junto a isso, o alto comando do Exército iniciou uma campanha para seduzir a classe operária a ingressar na corporação. Para obter êxito nessa meta, o Exército investiu o quartel de uma imagem familiar, em que oficiais virtuosos e paternais ensinariam lições de moral, de virilidade e de civismo ao filho do operário. Por meio dessa campanha de repaginação da imagem social do Exército, a corporação conseguiu aproximar a classe operária dos quartéis (CASTRO 2012).
Mais do que um apelo a um sacrifício espontâneo e voluntário, o Estado cobrava uma dívida a seu povo no combate ao comunismo. Mais do que uma concordância de princípios, a luta contra o comunismo exigia o cumprimento de um dever a seus cidadãos. Com o golpe de 1964 e a Ditadura que se seguiu, o Brasil, argumentam os seus defensores, conseguiu se livrar do comunismo. Por meio da ação “redentora” dos militares e a obediência religiosa do povo ao regime, o Brasil, novamente segundo seus apoiadores, conquistou a paz e a harmonia sociais e o desenvolvimento econômico.
Com o fim da Ditadura em 1985, a religião civil brasileira do século XX perdeu gradualmente cada vez mais viço ao longo do desenvolvimento da Novíssima República (1985-). Porém, com o estouro da crise capitalista de 2008, que estourou no Brasil em 2013, o apelo religioso da religião civil brasileira do século XX retornou nesse início de século XXI. Com a revitalização do nacionalismo em sua forma religiosa, os seus elementos do passado voltaram com tudo, especialmente a luta contra o comunismo (que de resto se encontra em baixa em todo mundo), protagonizada pelos militares, profissionais de segurança pública e cristãos conservadores.
Rediviva, a religião civil brasileira do século XX volta a exigir sacrifícios diários de seus adeptos no século XXI. Ao se sacrificarem, os bolsonaristas estariam lutando para salvar a pátria ameaçada pela corrupção e dissolução comunistas. A adesão a esse movimento não acontece por mera escolha voluntarista e opcional. Ao participarem dessa luta, os bolsonaristas estariam pagando a sua dívida com a Pátria e, assim, também estariam contribuindo para garantirem as prometidas paz e prosperidade sociais e a prosperidade econômica.
Nesse momento, o apelo a dívida possuí estímulos de diferentes tipos. As dívidas com a família, com Deus, com o Estado, com a Pátria e/ou com o Mercado são mobilizadas de acordo com o público-alvo específico da propaganda bolsonarista. Mobilizando intensamente essa religião civil atualizada, os principais nomes do bolsonarismo conseguem levar grandes massas às ruas em verdadeiras manifestações religiosas, em que o suposto povo confere um poder absoluto, praticamente divino, ao seu “líder supremo”, caracterizado e aclamado como “messias”.
Afetados por uma propaganda ininterrupta com esse conteúdo da religião civil há pelos menos uma década, a eleição presidencial de 2022 foi ainda mais carregada com um verniz religioso do que a de 2018. Apelos a supostos fechamentos de igrejas, da suposta relação do candidato vencedor da eleição com Satanás e outras alegações moralistas de cunho religioso rechearam a campanha presidencial de Bolsonaro, que seria a representação do “salvador”, do “templário”, do “cruzado”.
Com a derrota de Bolsonaro no pleito, a massa bolsonarista passou a se ver diante dos portões do inferno, percepção que vem sendo alimentada pela propaganda bolsonarista. Como último recurso diante do desespero, essa massa se joga e acampa na frente dos quartéis clamando por alguém que desempenhe o papel de salvador por meio das armas.
Como na religião civil brasileira do século XX, a do século XXI alardeia sem tréguas o caráter corruptor do comunismo, que supostamente já teria se infiltrado nas instituições da República. A única solução para esse suposto apocalipse seria a ação violenta dos militares por meio de uma “intervenção federal” que sanearia a República.
Ao contrário do que querem acreditar os otimistas, esta é uma situação que vai durar ainda por um bom tempo. Ao se desenvolver, a Modernidade inevitavelmente abriu espaço para projetos que buscavam a sua superação, como o socialismo. Para vencer a disputa pelo poder, o bolsonarismo resgata e ressuscita a religião civil brasileira do século XX. Mesmo que não faça sentido para quem se guia por uma concepção de mundo racionalista, a atualização da religião civil brasileira do século XX no XXI tem demonstrado grande eficácia em mobilizar grupos de cidadãos.
Referências
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CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
CASTRO, Celso. A luta pela implantação do serviço militar obrigatório no Brasil. In: CASTRO, C. Exército e nação: estudos sobre a história do exército brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012.
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. trad. e notas Amador Cisneiros. 2.ed. São Paulo: EDIPRO, 2011.
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GELLNER, Ernst. O advento do nacionalismo e sua intepretação: os mitos da nação e da classe. In: Gopal Balakrishnan (org.). Um mapa da questão nacional. introd. Benedict Anderson. trad. Vera Ribeiro. revis. trad. César Benjamin. 1.ed. 1.reimp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
GRAEBER, David. Dívida: os primeiros 5.000 anos. trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). trad. Marcos Santarrita. rev. técn. Maria Célia Paoli. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 7.ed. trad. Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. São Paulo: Paz & Terra, 2016.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. glossário e revisão técnica Patrícia Fontoura Aranovich. trad. MF. edição de texto Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. trad. Paulo Neves. 1.ed. São Paulo: Ubu, 2017.
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PALACIOS JUNIOR, Alberto Montoya Correa. As guerras de vingança e as Relações Internacionais: Um diálogo com a antropologia política sobre os Tupi-Guarani e os Yanomami. São Paulo: UNESP, 2019.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do Direito Público. trad. Maria Constança Pissarra. Petrópolis: Vozes, 2017.
SAHLINS, Marshall. The spirit of the gift. In: SAHLINS, Marshall. Stone age economics. With new foreword by David Graeber. Milton Park, Abingdon, Oxon; New York, NY: Routledge Classics, 2017.
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