Por Eduardo Barbosa [1]
A relação entre o Estado, grupos racialmente marginalizados e povos indígenas no Brasil contemporâneo é pautada pela violência. A imprensa nacional está cotidianamente tingida pelo sangue que as instituições estatais derramam nestes recortes populacionais. É preciso questionar esta relação para estabelecermos a vida e não a morte como diretriz governamental. Este não é um mal que corre às soltas apenas nas trincheiras da história brasileira. O problema da violência enquanto forma de governo é um tema recorrente nas discussões filosóficas sobre o funcionamento das sociedades contemporâneas. Diversos estudiosos já se debruçaram sobre esta questão, tais como Hannah Arendt, Michel Foucault, Giorgio Agamben e Judith Butler. Os conceitos trazidos por estes filósofos nos possibilitam compreender a institucionalização de dispositivos de controle formulados em países centrais que são assimilados por outras sociedades mundo afora. O que seriam as recorrentes chacinas em favelas e o extermínio em série dos povos originários no Brasil, senão uma aplicação de mecanismos perversos de governo? São esses mecanismos que os autores citados tratam e é a partir deles que este texto-denúncia pretende evidenciar as políticas perversas de governo que vigoram no Brasil contemporâneo, fortalecidas nos quatro anos de governo Bolsonaro.
As vidas negras e indígenas no Brasil são historicamente precárias, sempre estiveram sob o risco de descarte. Nossa formação econômica se estruturou sobre a escravização de pretos e índios. Resistir a esse projeto socioeconômico escravagista significava uma ameaça ao Estado. Tanto o fim da escravidão, quanto a garantia dos direitos indígenas na Carta Magna de 1988, não garantiram efetivamente o fim desse risco de descarte. O Estado está sempre tentando controlar as populações negras a partir de uma política de morte conduzida por forças policiais que decidem por meio de filtragem racial quem vive e quem morre. Assim como está sempre tentando “limpar” as terras indígenas para que os brancos a explorem com seus garimpos e boiadas. O manejo violento dessas populações é operado a partir de uma exceção que o Estado cria para a suspensão de direitos civis fundamentais e a implementação de um projeto cruel de Nação.
É evidente que desde os anos 90 houve um recrudescimento da violência institucional no Brasil. Há uma espécie de guerra civil na qual determinados setores populacionais estão em permanente conflito com o Estado. Em um momento o Estado cria uma vulnerabilidade negro-periférica sujeita às suas biopolíticas de extermínio, como as incursões policiais produtoras de chacinas em favelas. Em outros períodos cria-se uma ecovulnerabilidade, isto é, uma forma de tornar inviável a vida de uma população a partir da contaminação de suas fontes de água potável, da inviabilidade de regimes alimentares oriundos de seu local de habitação e inviabilidade da forma habitual de viver ocasionada por destruição ambiental. O incentivo do garimpo em terras indígenas, por exemplo, é uma política de extermínio, porque produz uma ecovulnerabilidade entre os povos originários que coloca suas vidas e existências em risco.
Esse cenário catastrófico de conflitos de interesse só se mantém porque institucionalizamos a precarização das vidas que o Estado não considera relevantes para o seu projeto socioeconômico. Ou seja, mesmo com o fim da escravidão e a instauração dos direitos garantidos pela Constituição Brasileira, seguimos com o plano colonizador inicial de Nação. Como os direitos fundamentais estão garantidos por lei, o estado precisa atuar à revelia dessas garantias, mas age a partir de exceções juridicamente legais que mascaram a criminalidade de suas políticas. É exatamente esse processo que Agamben (2004, p. 12), define como “estado de exceção”, “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. As medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito”, pois são instrumentos que suspendem os direitos individuais. Isso garante, por exemplo, que determinados sujeitos sejam exterminados caso representem uma ameaça ao Estado.
Um exemplo é o estado de exceção do Nazismo. Assim que o poder foi entregue a Hitler, este suspendeu os artigos referentes às liberdades individuais presentes na Constituição de Weimar e promulgou o Decreto para a proteção do povo e do Estado. Do ponto de vista jurídico, o terceiro reich se constituiu como um estado de exceção que durou 12 anos, visto que o decreto jamais foi revogado após sua instauração (Agamben, 2004, p.13). Para os ideais nazistas, era preciso suspender os direitos individuais para promover uma institucionalização do racismo e da marginalização dos não-arianos.
A questão é que o dispositivo do estado de exceção não foi sepultado com a derrocada de regimes totalitários, tal como o regime nazista. Pelo contrário, ele foi reformulado e absorvido por regimes democráticos, transformando-se em um paradigma de governo.
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.” (2004, p.13).
É uma zona nebulosa entre absolutismo (a suspensão de direitos individuais) e democracia. No agir governamental dentro dessa indeterminação temos uma biopolítica (FOUCAULT, 1999), um processo no qual ora o estado mata, ora deixa morrer. As forças policiais produzem matanças seletivas e racializadas em favelas e a falta de proteção das terras indígenas cada vez mais exploradas predatoriamente pelos brancos deixa-os morrer. No Brasil parece ser comum tanto uma coisa quanto outra. É o que a vulnerabilidade negro-periférica urbana e a ecovulnerabilidade indígena, respectivamente, nos revelam.
Uma operação policial em 2021 resultou na morte de 25 pessoas na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de janeiro. Duas pessoas foram atingidas em um vagão do metrô por balas perdidas, disparadas na operação. Essa era até aquela data a segunda maior chacina da história da cidade. A operação ocorreu mesmo sob uma resolução do STF que suspendia todas as operações policiais em favelas enquanto o país vivia o ápice da crise sanitária causada pela pandemia de covid-19 (EL PAÍS, 2021). É flagrante a constatação de que neste tipo de ocorrência os direitos fundamentais garantidos pelo estado de direito foram suspensos. Quando se trata de populações periféricas, a inviolabilidade do lar e o direito à vida cedem lugar ao controle violento instrumentalizado pelo Estado. É o que esta reportagem do El País denuncia:
“De acordo com o relato de quem acompanha a operação no local, os agentes estão invadindo a casa de moradores para realizar revistas — que só podem ocorrer com mandado judicial — e estão colocando os corpos das pessoas mortas em veículos blindados da corporação. Em uma das imagens recebidas pelo EL PAÍS, três agentes carregam irregularmente um corpo dentro de um lençol branco, atrapalhando qualquer trabalho de perícia.”
“O EL PAÍS recebeu imagens de corpos caídos no chão e de pessoas ensanguentadas. Também circulam fotografias do interior de algumas casas. Nelas, paredes e pisos aparecem com marcas de bala e grandes manchas de sangue. “Tenho uns 10 relatos de pessoas contando que a polícia entrou em suas casas revistando e jogando tudo para cima. A favela inteira está tomada”, afirma o morador. Em um áudio recebido por este jornal, outra pessoa relata a seguinte cena: “Entramos numa casa aqui com pedaço de massa encefálica. Invadiram a casa de uma senhora e torturaram o cara aqui dentro, a casa está toda suja de sangue”. Outra também relatou que em uma residência havia quatro mortos em uma laje e que os agentes não deixavam ninguém entrar. Há também denúncias de que agentes confiscaram telefones de moradores, sob o argumento de que mandavam informações para traficantes. (06/05/2021).”
A operação de maior letalidade em periferias aconteceu em 2005 entre Nova Iguaçu e Queimados, municípios do Rio de Janeiro, quando policiais mataram 29 pessoas. Antes disso, em 1993, uma operação na favela carioca de Vigário Geral terminou com a morte de 21 pessoas. Em 2022, 23 pessoas morreram em decorrência de uma operação policial na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro. E em 2007, 19 pessoas morreram em uma operação no Complexo do Alemão. (EL PAÍS, 06/05/2021; G1, (01/06/2021). De acordo com uma reportagem do G1 (01/06/2022), o estado do Rio de Janeiro teve em 14 anos 593 chacinas provocadas por operações policiais. Entre 2007 e 2021 houve 17.929 operações policiais nas quais houve a morte de 2.374 civis. As comunidades periféricas de grandes centros urbanos parecem viver um ininterrupto momento Carandiru em que as forças policiais agem como se o extermínio daqueles classificados como criminosos fosse a única forma de controle do estado sobre as populações em quadros de crise social. Uma crise, vale ressaltar, criada pelo próprio Estado. Pois a maioria das operações policiais resultantes em chacinas são operações de combate ao tráfico de drogas. Haveria operações contra traficantes se os psicoativos deixassem de ser vendidos em bocas de fumo e fossem vendidos em farmácias? Ou se o consumidor pudesse cultivar seu próprio psicoativo? Estas chacinas não são apenas evidências de políticas antidrogas fracassadas. Elas expõem o modo como a vida é organizada sob um estado de exceção reformulado.
Observemos na notícia referente ao maio de 21 de Jacarezinho, os confiscos, as invasões de domicílio, as buscas sem mandato judicial, as mortes de suspeitos. Observemos com atenção a palavra “suspeito”, um rótulo suficiente para produzir um alvo.
Sob um estado de exceção não é necessário a manutenção dos direitos individuais.
Por isso a polícia abate suspeitos. Mata-se 29 pessoas em benefício de uma sociedade mais segura. Aqui o Estado faz morrer o possível criminoso ou deixa viver o insuspeito. Nos termos de Foucault (1999), tem direito de vida e de morte. A morte desse outro indesejável sanitiza a vida em geral. É o Estado absolutista que, tal qual Creonte, decide que Antígona deve morrer por ter violado suas leis. E o corpo criminoso precisa ficar exposto como forma de admoestação. O que são as chacinas policiais senão formas de disciplinar a favela por meio da exposição de seus cadáveres?
De acordo com o G1, as operações policiais no Estado do Rio de Janeiro nos últimos 15 anos provocaram 4,7 vezes mais mortes de negros e pardos em comparação com brancos. “Dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio mostram ainda que os negros e pardos representam 72% de todos os óbitos causados por intervenção de agentes do Estado nesse período” (20/11/2021). É esse tipo de evidência que nos mostra em detalhes o que Foucault (1999) define como um racismo de Estado. O racismo aqui se desenha de forma clara contra uma periferia favelada, pobre e negra. Não se trata de aleatoriedade na geografia das chacinas e dos sujeitos abatidos nas ações policiais violentas. Trata-se de uma seleção que constrói a figura do criminoso a partir do que Sinhoretto (2020) define como filtragem racial. O suspeito é sempre de pele não-clara, jeito de malandro e cara de bandido. O olhar policial é treinado para fazer uma varredura visual, branco passa, preto fica. Essas políticas utilizadas por instituições policiais não são feitas para o controle pacífico do ambiente social das periferias. Elas são ferramentas de seleção de corpos a ser rastreados e abatidos. É uma política eficiente na produção de mortos. Todas estas operações policiais têm respaldo do Estado, pretende-se com elas combater os crimes periféricos. Ou seja, a polícia promotora de chacinas nas favelas é a entidade a materializar o efeito do dispositivo de estado de exceção aplicado a um determinado setor populacional.
Neste caso, o favelado está sempre com a vida por um fio, caminhando ad eternum na corda bamba do Estado regida pelas forças policiais. Temos, portanto, uma ação direta do estado que promove o extermínio de uma população marginalizada. E mais do que isso, temos a institucionalização do marginalizado, a criação do que denomino por uma vulnerabilidade negro-periférica. Isso nos mostra que a máquina de fazer vulneráveis é uma ferramenta para viabilizar as chacinas policiais.
Os casos dessas comunidades as quais eu trouxe como exemplo nos mostra como o Estado distribui vulnerabilidades entre seus cidadãos. Judith Butler (2020, p.10) apresenta alguns argumentos sobre essa questão no livro Vidas precárias. Afirma ela que “existem meios de distribuir vulnerabilidades, formas diferenciadas de alocação que tornam algumas populações mais suscetíveis à violência arbitrária do que outras”. É o que vemos nas periferias brasileiras. As favelas cariocas são historicamente suscetíveis à violência arbitrária do Estado. Embora haja uma ampla discussão pública sobre este problema, ele é recorrente, vai dos anos 1990 a 2022.
Ao analisarmos o estado de exceção como paradigma de governo observamos como as políticas de segurança pública selecionam e matam sujeitos periféricos. No entanto, a violência de estado não está localizada apenas nas bordas das metrópoles. A mesma máquina que produz corpos vulneráveis nas favelas também os produz pelo interior do país, em regiões rurais. Por isso é importante discutirmos a institucionalização da violência em outras localidades. É o caso do aumento da precarização da vida dos povos originários em face das políticas do governo Bolsonaro.
Neste contexto, a violência institucional não opera de acordo com os mesmos mecanismos que estruturam o manejo violento das comunidades cariocas. Se naquelas apontamos para um fazer morrer, aqui vigora um deixar morrer. Há uma mão do Estado que empunha a arma discretamente, não diretamente. Trata-se de uma política que preza pelo descaso.
No primeiro semestre de 2021 a imagem de uma criança Yanomami de oito anos pesando apenas doze quilos (o peso considerado normal para esta faixa etária é vinte quilos) gerou uma comoção no país. A criança, além do quadro de desnutrição, estava com malária. O El País (17/05/2021) veiculou a seguinte manchete sobre esse caso: “etnia enfrenta crises sanitária e ambiental com escalada de violência por garimpos ilegais. Povo denuncia novo ataque neste domingo. Imagem expõe o grave e crônico problema da assistência à saúde em várias aldeias”. A violência de Estado nesse caso tem um caráter de biopolítica. Pois aqui houve um estímulo do governo federal para a garimpagem e a dissolução do modo indígena de viver. É a isso que eu classifico de ecovulnerabilidade. Isto é, degrada-se um ambiente ao ponto de tornar a vida das populações que dele dependem insustentável.
Há uma ligação estreita entre ecovulnerabilidade e políticas governamentais. Em 2019 o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi exonerado do cargo por divulgar dados referentes ao desmatamento da Amazônia. Na Amazônia, vale lembrar, é onde estão a maior parte dos povos originários brasileiros, especialmente aqueles considerados isolados, como os Mashco. Na ocasião, o presidente Bolsonaro questionou os dados dizendo que “com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido”. Para o presidente não só os dados do Inpe eram falsos, mas o diretor do órgão poderia estar a “serviço de alguma ONG.” (FOLHA DE SP, 02/08/2019). Para entender este tipo de ataque contra um órgão de fiscalização ambiental é necessário convidar Hannah Arendt (1989) para a discussão. Pois este é o exemplo de uma negação da realidade, característica de um líder autoritário que coloca seu projeto de poder acima da vida de seus governados.
“O possuir poder significa o confronto direto com a realidade, e o totalitarismo no poder procura constantemente evitar esse confronto, mantendo seu desprezo pelos fatos” (p. 442). Na imagem fictícia de Brasil do presidente, não existe desmatamento em grande escala na Amazônia. É essa imagem que ele precisa vender e é nela que acredita, apesar de não ter relação direta com fatos estabelecidos por pesquisadores do cenário amazônico e instituições como o INPE que monitora o desmatamento no Brasil.
Já em uma transmissão via rede social em 2020, o presidente Bolsonaro afirmou que “o índio mudou, tá evol... Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós. Então, vamos fazer com que o índio se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, isso é o que a gente quer aqui” (G1, 24/01/2020). No seu governo não cabe o desenvolvimento econômico sustentável, tampouco modos de vida alternativos ao ocidental. Tudo se resume ao modo de vida do branco. É uma tentativa de eliminação de uma realidade rival ao seu projeto de governo (ARENDT, 1989). O presidente Bolsonaro prefere colocar seu projeto de país acima das necessidades dos povos amazônicos. Será que os Mashco que se organizam pelo espaço amazônico transitando entre espaços múltiplos e mantendo uma política de isolamento completo em relação a outros povos, como mostrou os estudos de Peter Gow (2011), desejaria uma integração à essa sociedade branca? Será que todos os próprios brancos querem estar inseridos nesse modelo insustentável de sociedade que insistimos em construir desde a invasão europeia?
No primeiro semestre de 2022, quando a Rússia declarou guerra à Ucrânia, Bolsonaro, então presidente, afirmou (CORREIO BRASILIENSE, 2022) que a dependência brasileira de fertilizantes russos poderia ser suprimida com a exploração mineral em reservas, como na foz do Rio madeira. Na época desta discussão tramitava na câmara com apoio do Palácio do Planalto o Projeto de Lei 191/2020 que liberava garimpagem em reservas indígenas. Para a especialista em meio ambiente e urbanismo Suely Araújo (CORREIO BRASILIENSE, 2022) o PL viabilizava uma mineração em larga escala, com falta de cuidados ambientais e a prioridade era o garimpo de ouro. Obviamente, não se trata de desenvolvimento sustentável, mas de produção de vulnerabilidades de populações consideradas um entrave à exploração deletéria do meio ambiente e seus recursos.
Um Yanomami em denúncia ao Correio Braziliense (03/03/2022) disse o seguinte:
“Desde 2019, relato as necessidades e pedimos socorro ao Governo. Agora está pior. Aumentou muito a desnutrição. Onde tem garimpo forte tem o problema da fome. E na pandemia aumentaram as invasões. Como eu vou explicar a fome dos Yanomami? Eles [os garimpeiros] sujam os rios, destroem a floresta, acabam a caça. Nós nos alimentamos da natureza.”
É impossível não retornar à Arendt (1989) como fonte explicativa para a invasão do garimpo às reservas indígenas. É uma ação que decorre do discurso presidencial. Faz parte de seu projeto de governo a eliminação da cultura indígena, a ecovulnerabilidade, a pilhagem das reservas. “Como um conquistador estrangeiro, o ditador totalitário vê as riquezas naturais e industriais de cada país, inclusive o seu, como fonte de pilhagem” (p. 472).
Para Arendt (1989)
“o motivo pelo qual os regimes totalitários podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e ficcional é que o mundo exterior não-totalitário também só acredita naquilo que quer e foge à realidade ante a verdadeira loucura, tanto quanto as massas diante do mundo normal. (p. 487).”
O Brasil de 2018-2022 viveu sob um regime que se parece, em grande medida, com um governo totalitário. O apagamento das diferenças entre povos não é uma característica totalitária mascarada de integração? O racismo de Estado não é uma característica do totalitarismo? Que é a miséria dos Yanomami senão uma biopolítica na qual se produz “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”? (FOUCAULT, 1999). Quem deve viver nesse caso é o branco que garimpa.
Assim como as comunidades periféricas vivem às voltas com um Estado que viola seus direitos individuais, os povos originários vivem às voltas com um Estado que viola tanto seus direitos individuais, quanto seus direitos coletivos. A partir dessa discussão, aponto para uma de nossas maiores contradições enquanto Nação. Uma contradição que faz habitar no mesmo cenário a democracia e o absolutismo. Povos indígenas e negros favelados vivem sob um estado de exceção constante dentro de um Estado democrático de Direito. Parece que estes sujeitos estão presos dentro de um Brasil-Carandiru do qual não podem escapar. Um lugar no qual aguardam a chegada inexorável do carrasco com seus distintivos ou seus garimpos e boiadas. É Estado democrático de Direito ou permanente Estado de exceção?
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: Homo sacer, II, I. São Paulo: Boitempo, 2004.
ARENDT. Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CORREIO BRAZILIENSE. Politica. Bolsonaro usa guerra como alegação para defender mineração em terra indígena. Online. Março de 2022.
BUTLER, Judith. Vidas precárias: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
G1. Profissão Repórter. Rio de Janeiro tem 593 chacinas policiais em 14 anos aponta levantamento. Online. 01 de junho de 2022.
———. Política. Cada vez mais o índio e um ser humano igual a nós, diz Bolsonaro em transmissão nas redes sociais. 24 de janeiro de 2020.
———. RJ. Pessoas negras e pardas morreram 47 vezes mais do que brancas em ações da polícia no RJ nos últimos 15 anos. Online. 21 de novembro de 2020.
GOW, Peter. “Me deixa em paz!”. Um relato etnográfico preliminar sobre o isolamento voluntário dos Mashco. Revista de Antropologia. [S. l.], v. 54, n. 1, 2012.
EL PAÍS. Brasil. Operação policial mata 25 pessoas no jacarezinho em segunda maior chacina da história do Rio. Online. 06 de maio de 2021.
———. Brasil. 8 anos e 12 quilos: a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami no Brasil. 17 de maio de 2021.
FOLHA DE SP. Ambiente. Diretor do Inpe será exonerado após críticas do governo à dados de desmate. Online. 02 de agosto de 2019.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège du France (1975-1976. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SINHORETTO, Jaqueline. et al. Policiamento e relações raciais em perspectiva comparada SP e RS. In: 44º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 44, 2020. S/L. Anais. 2020.
SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2019.
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