Escrito por Renato Libardi Bittencourt
Fotografado por Fabio Teixeira
Existia e ainda existe certo ar de “promessa” e de “esperança” aqui no Brasil de que, após a vitória eleitoral de Lula, reestabeleceríamos a “normalidade” da vida na frágil Democracia Liberal. O que se tem dito por aí (ver nota do MST sobre os bloqueios nas estradas) é que bastaria esperar passiva e ordeiramente a posse do recém-eleito presidente e deixar a extrema-direita agonizar no que seria seu último suspiro.
Entretanto, desde o dia em que o resultado das urnas foi definido, a extrema-direita tem tomado as ruas numa clara tentativa de Golpe e demonstração de força, evidenciando, dessa forma que, longe de estarem respirando por aparelhos, estão unidos, articulados, fortes e coesos. Desde 30 de outubro tivemos: fechamento de estradas por boa parte do território nacional, pedidos por intervenção militar nas ruas e quartéis (que perduram até agora e sem previsão de fim), ônibus invadido por bolsonaristas que na ocasião agrediram estudantes, reitor de uma Universidade Federal protocolando documento em apoio ao Locaute golpista, apoio e conivência das forças de segurança do Estado às manifestações golpistas e antidemocráticas, manifestações de xenofobia e racismo contra nordestinos, suásticas e incêndio criminoso na sede do MST em Pernambuco, fora as birras do “Deus Mercado”. (Veja, por exemplo, essa matéria no Brasil de Fato PR.)
O curioso (ou trágico) nesse absurdo todo é o absoluto imobilismo da esquerda brasileira majoritária, hegemônica e institucional que, diante de tais absurdos, foi incapaz de reagir. Não, não se trata de conclamar uma guerra civil. Sabemos que as forças de segurança e a justiça brasileira não estão do nosso lado (bastaria muito menos para um “banho de sangue” contra nós por parte da polícia). Mas, desde quando precisamos de um respaldo do Estado ou uma situação favorável para ocupar o que historicamente sempre foi nosso, as ruas? É bem verdade que qualquer tipo de manifestação acarreta seus próprios riscos e que a conjuntura atual inspira em muitos de nós o temor. Entretanto, aquela velha máxima de Marighella continua atual: “Não tive tempo para ter medo”.
RIO DE JANEIRO, 30 de outubro. Fotos por Fabio Teixeira.
Do lado da esquerda revolucionária, autônoma e combativa a história já foi bem diferente. No dia 1 de novembro, a página “Antifa Hooligans Brasil” emitiu um comunicado convocando as torcidas organizadas para barrar a tentativa de golpe, desbloquear as estradas e defender a limitada democracia que ainda nos resta. Nessa mesma ocasião, o MTST também emitiu um comunicado a sua militância para frustrar os golpistas e seus financiadores. Diferentemente e em desacordo estratégico com o MTST, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) lançou uma nota apelando para que a esquerda mantivesse a calma, confiasse nas instituições e aguardasse a posse de Lula. Ora, temos aí um evidente conflito teórico e estratégico dentro das esquerdas. Afinal, devemos ou não ocupar as ruas nesse momento? É seguro? O que fazer diante disso tudo? A posse de Lula será o início de tempos melhores?
São perguntas complexas e que não possuem uma resposta simples ou uma receita mágica que possa nos orientar objetivamente diante de tantos desafios. Contudo, a boa e velha tradição filosófica nos ensina que, diante de perguntas difíceis, é sensato e prudente fazermos questionamentos mais refinados em cima das questões originais. Por exemplo: “Faz sentido um temor por uma guerra civil quando, para quem é preto e periférico, a guerra e o genocídio acontecem todos os dias”? Essa indagação refletiria o recorte de classe e raça dentro da própria esquerda?
O argumento da “guerra civil”, isto é, de que as militâncias e o povo nas ruas poderiam verdadeiramente provocar uma guerra de verdade, um banho de sangue e uma grande ruptura sistêmica, só revela os privilégios ou certo grau de alienação social daqueles que o utilizam para justificar uma esquerda cada vez mais com a cara do Sistema o qual um dia se opuseram de forma mais radical e honesta. Sejamos francos, não se morre apenas de bala no Brasil. Se morre de fome, de desamparo, do sucateamento da saúde pública e, até de indiferença política, como é o caso em questão. O argumento da “guerra civil” me evoca a lembrança da letra da música “Estamos Mortos” do Rapper Eduardo Taddeo (ex Facção Central) que se inicia dizendo: “Ninguém pode ser considerado vivo; Comendo sobras de lixeiras; Erguendo mãos para pedir esmolas; Fumando crack; Perdendo a saúde puxando carroças de papelão (...)” e termina ressaltando que: “Enquanto não pudermos impedir o genocídio; O racismo; A alienação; O aprisionamento em massa; A pobreza extrema e a anulação social; Não passaremos de cadáveres que respiram; Meus pêsames para todos nós que vegetamos; No necrotério dos vivos”.
RIO DE JANEIRO, 20 de outubro. Fotos por Fabio Teixeira.
A pergunta que me faço no momento é: estamos anestesiados? Essa anestesia decorre de tanta porrada que levamos nos últimos anos dos liberais e da extrema-direita? O estrago foi tamanho que perdemos a capacidade de reagir à altura? Ficamos mansos como cordeiros? Deixamos a justa cólera de nossos corações se metamorfosear em um estado depressivo, letárgico? Não, mais uma vez, não estou evocando aquelas cenas plásticas e estereotipadas de militantes jogando molotovs na tropa de choque da PM e “tocando o terror” (por mais que essa visão onírica me agrade). Estou falando de pessoas comuns em massa ocupando as ruas.
Mesmo que haja quem diga que isso só traria mais confusão e daria mais visibilidade para a extrema-direita e os bolsonaristas, trata-se aqui de uma urgência, de um dever caro à tradição antifascista: “nenhum palco para fascista”. É bem verdade que os liberais e a extrema-direita tiveram ampla e esmagadora vitória nas últimas eleições, mas continuar desocupando a avenida para a extrema-direita passar no lugar de fincar o pé na rua e gritar “não passarão!” possui resultados históricos catastróficos. Todas as vezes que, na história, ignoramos a ascensão do fascismo e não os desarticulamos com estratégias combativas de ação direta, adivinha: eles triunfaram, cresceram, frutificaram e impulsionaram ainda mais seu alcance social no meio das massas.
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