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Mulheres à luz do Ramadã

Atualizado: 20 de out. de 2023

Por Mirna Wabi-Sabi
A procissão de Arbaeen, observada principalmente pelos xiitas, que representam cerca de 15% dos quase 2 bilhões de muçulmanos do mundo. Foto de Mostafa Meraji em Mehran, Irã (2019).
A procissão de Arbaeen, observada principalmente pelos xiitas, que representam cerca de 15% dos quase 2 bilhões de muçulmanos do mundo. Foto de Mostafa Meraji em Mehran, Irã (2019).

À luz do Ramadã, há algumas considerações das quais qualquer não-muçulmano pode se beneficiar enormemente. Tive muito pouca experiência com muçulmanos crescendo no Brasil, nos Estados Unidos e nos Países Baixos, e aprender sobre o Islã iluminou vários comportamentos que eu nunca enxerguei como cristãos. No ocidente, incluindo lugares fortemente colonizados e aspiram à ocidentalização, como o Brasil, o cristianismo é onipresente. Frequentemente, não prestamos atenção para como são religiosas todas as nossas instituições e normas, desde a maneira como nos vestimos até os calendários e alfabetos que usamos (pág. 418-421). Reconhecer as raízes religiosas dessas normas é útil para qualquer pessoa que queira melhorar as condições sociais de suas comunidades em países ocidentais não-muçulmanos, porque essas normas cristãs geralmente são tão opressivas quanto imaginamos que as islâmicas sejam.

“Tão opressivo quanto” é complicado. A opressão assume muitas formas, e há pouca utilidade em classificá-las. Mas é possível que algo que vemos diariamente pareça menos opressivo do que algo que raramente vemos ao vivo. Há uma opressão que se normaliza, e nós confundimos isso com uma indicação de que a norma é “menos opressiva”.

O hijab, por exemplo. No Brasil é uma raridade. Muitos dos brasileiros não sabem a diferença entre hijab e burca, e vê todas as vestimentas do tipo como um símbolo de opressão feminina. Isso se aplica para pessoas em todo o espectro político entre direita e esquerda. É difícil imaginar essas opiniões sendo sustentadas por pessoas que convivem com ou já conheceram mulheres felizes e bem ajustadas que usam o hijab no Brasil. Sim, é possível, essas mulheres existem. E após uma inspeção mínima, pode-se perceber que os sentimentos de infelicidade ou alienação decorrem principalmente da insegurança econômica, que muitas vezes decorre de reações islamofóbicas aos seus hijabs – e não da religião ou do próprio hijab.

Mariam Chami, uma muçulmana brasileira que agregou mais de meio milhão de seguidores no Instagram ao combater a islamofobia com o humor.

De qualquer forma, todas as mulheres às vezes se sentem infelizes e mal ajustadas. Em um momento ou outro, lidamos com relacionamentos difíceis com os outros, com nossa espiritualidade, com nosso trabalho ou com nosso senso de independência. Temos muito mais em comum com as mulheres muçulmanas do que imaginamos e muito a aprender umas com as outras.

A discussão sobre cobrir a cabeça e a vestimenta modesta pode importar para qualquer mulher, em qualquer lugar. Como mulher num contexto ocidentalizado, é impossível evitar considerar o nível de modéstia de nossas roupas sempre que nos vestimos. Consideramos constante e automaticamente, sem perceber. Há uma consideração cuidadosa sobre onde estaremos, como chegaremos lá e quanta pele é “apropriado” expor em cada etapa do caminho. E por apropriado, quero dizer, quanto cobrir e em qual contexto, literalmente devido ao medo por nossa segurança física (ou como declarações de desafio).

No Ocidente, a maioria das mulheres oscila de um ponto ao outro num espectro entre ser sexualizada demais e não se sentir desejável o suficiente. Muito do valor de uma mulher no Ocidente é baseado em quão sexualmente desejável ela é, porque nosso valor costuma ser proporcional ao dos homens com os quais nos associamos. Este é um paradigma opressivo do qual não estamos conscientes, ou pelo menos não tão conscientes quanto estamos dos hijabs e outras vestimentas modestas quando as vemos. Pode bem ser nós que somos a influência tóxica, já que as obsessões opressivas do ocidente com a objetificação dos corpos das mulheres, a hipersexualização de meninas, e as luxuosas cirurgias plásticas (em particular) estão se infiltrando no mundo muçulmano.

Quando penso nos valores e práticas de adoração do povo muçulmano em geral, penso no comportamento inescrupuloso dos chamados homens cristãos que encontro diariamente e em como é hipócrita para as mulheres ocidentais julgar um mais duramente do que o outro. Uma vez, notei um motorista do Uber olhando para o meu decote e começando a me fazer perguntas para ver o quão bêbada eu estava. A resposta das pessoas a essa história, inclusive a minha, foi nunca entrar num Uber sozinha, bêbada, com muita pele à mostra. Fazemos isso porque é mais fácil controlar nosso próprio comportamento do que o comportamento de homens desconhecidos (quando não assumir o controle não é uma opção).

A consideração da modéstia vai além das roupas, é também sobre a obsessão com o álcool. Tantas interações sociais de alguma forma giram em torno de bebidas alcoólicas. E requer contato com músicas desagradáveis, se não totalmente ofensivas.

O carnaval brasileiro é o máximo em indecência, álcool e música provocativa. Na teoria religiosa, o Carnaval é uma celebração pré-quaresma, que deve ser seguida pela observância de como Jesus jejuou no deserto e resistiu a todos os tipos de tentação. Comemoramos isso fazendo muito de tudo que Jesus assumidamente não fez. Até a palavra Carnaval vem do latim Carnis levare, que significa “afastar-se da carne”. Claramente, nós pegamos isso e fazemos exatamente o oposto.

A última Globeleza, tradição que não sobreviveu à pandemia devido às acusações de machismo e racismo na tentativa de retorno esse ano.

Há algo de especial em abster-se de música e álcool e começar a se vestir com modéstia. Impõe uma mudança de paradigma e pode nos obrigar a olhar para coisas que talvez sejam mais autênticas em nós mesmas. Como estamos realmente nos sentindo? Queremos estar neste lugar, com essas pessoas? O que queremos da vida e quais são nossos valores?

Há poder na música, nas drogas e roupas – poder espiritual. Há uma razão para a oração e os cânticos. Há uma razão para restrições alimentares religiosas e substâncias alucinógenas sagradas. Há significado nas vestimentas religiosas. Isso pode não ter significado para todos igualmente, mas perdurou como prática por milênios em praticamente todos os cantos do planeta ocupados por humanos.

Se passarmos um momento jejuando e orando, ou nos abstendo de música, drogas e álcool, esse momento pode nos conectar a algo um pouco mais verdadeiro sobre nós mesmos – ao que veneramos.

Todos nós veneramos alguma coisa, estejamos conscientes de sua natureza divina ou não.

Afirmar amplamente que o Islã é opressivo implica não haver espaço para os muçulmanos num mundo visto como justo. Essa retórica visa implicitamente legitimar o extermínio de um grande segmento não-ocidental da população mundial, em sentido literal ou epistemológico. E o extermínio étnico ou religioso é um elemento central do fascismo.

Os muçulmanos são tão diversos quanto os cristãos e têm tanto direito de praticar sua fé quanto nós temos o direito de reprimir atos vis e abusos de poder que permeiam todos os segmentos da sociedade (tanto as sociedades cristãs quanto as muçulmanas). Talvez devêssemos nos perguntar como podemos criar espaço para a comunidades muçulmanas em sociedades igualitárias. Como criar espaço para que todas as tradições epistemológicas floresçam em novas eras.

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