Embora essa linguagem (Capital Natural) possa ter sido desenvolvida com o intuito de comunicar o custo dos danos ambientais de forma que a indústria possa entender as perdas financeiras em não preservá-las, o resultado acaba sendo a utilização de tempo e recursos para nos levar a um beco sem saída.
Durante décadas, a comoditização da natureza e da agricultura em detrimento do planeta e da população – seja de humanos, animais ou plantas – tem sido criticada pela comunidade científica. O desmatamento desenfreado ameaça toda a vida na Terra, e a maioria dos danos causados aos ecossistemas no Brasil, a região de maior biodiversidade do mundo, é devido a indústrias que não satisfazem as necessidades humanas imediatas, como comida e água potável. Em vez disso, elas são direcionadas para combustível, ração para gado, óleos e assim por diante – todos os quais dependem intensamente de pesticidas.
A agricultura certamente pode ser vista como um processo natural, mas a industrialização dela, principalmente através do uso de pesticidas perigosos, é bem mais difícil de descrever como tal. A pesquisadora Larissa Bombardi argumenta que a conversão da produção de alimentos em ‘commodities’ é feita por meio do “uso massivo de agrotóxicos” (2017). Enquanto isso, “o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos desde 2008”; seu “consumo aumentou 190% na última década”.
Em uma das suas publicações mais importantes, a pesquisa Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, o Atlas do Agrotóxico, Bombardi mostrou que os “30 milhões de hectares utilizados – ou desmatados – para o cultivo de soja no Brasil são o destino de mais da metade (52%) dos agrotóxicos vendidos no país. Ao considerar que essa soja é em sua esmagadora maioria (95,5%) transgênica e seu principal papel na indústria alimentícia é ser transformada em matéria-prima para a pecuária, podemos, sem dúvida, categorizá-la como uma commodity. Portanto, à medida que mais dados sobre os perigos dos pesticidas e do desmatamento são acumulados, um país megadiverso como o Brasil não apenas fracassa em desacelerar o processo de mercantilização de recursos naturais, mas o acelera.
Os dados que descrevem os danos ambientais e suas repercussões são bem conhecidos por acadêmicos e jornalistas, mas não foram suficientes para provocar mudanças significativas. Possíveis soluções para esse uso insustentável da terra pelo agronegócio foram debatidas em cúpulas de líderes mundiais; tratados foram forjados, assinados e promovidos. Mas ainda nos vemos avançando cada vez mais rápido em direção à obliteração de ecossistemas naturais pelo planeta.
Em seu artigo de 2021, “Geografia da Assimetria: o ciclo vicioso dos agrotóxicos e do colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Europeia”, Larissa Bombardi destaca quantos agrotóxicos são fabricados na Europa, depois usados para produzir ‘commodities’ no Brasil, que são então vendidos de volta aos europeus. Os Países Baixos, por exemplo, consomem bilhões de euros em sucos de frutas do Brasil, cuja produção depende de substâncias não apenas mortais e proibidas na União Europeia, mas também fabricadas e vendidas por seus membros. “Nos últimos dez anos, 56 mil pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos usados na agricultura brasileira. O país registra uma média de 5.687 casos desse tipo de intoxicação por ano, o que equivale a 15 pessoas intoxicadas por agrotóxicos todos os dias”, afirma ela.
Nesse cenário, agricultores brasileiros são os que mais sofrem com esse ciclo desequilibrado de distribuição de recursos, lidando com problemas de saúde que vão de intoxicação a câncer e ideação suicida. Em seu Atlas de 2017, Bombardi argumenta que os números de intoxicações por pesticidas em todo o país são subnotificados a uma taxa de 1 a 50 – para cada 1 caso relatado, uma média de 50 possivelmente não são (página 54). Quase metade dos casos notificados foram suicídios (40%, página 55). Foi demonstrado que os pesticidas desempenham um papel em “Transtornos Psiquiátricos Menores”, como depressão, e diz-se que as dificuldades financeiras entre os agricultores exacerbam esses sintomas.
Como uma possível solução para esta crise, grandes organizações internacionais, como as Nações Unidas (Sistema de Contabilidade Econômica Ambiental), investiram na ideia de “Capital Natural” – uma ferramenta no campo da economia para levar em consideração práticas comerciais ambientalmente insustentáveis em suas avaliações de risco. Ela oferece um sistema, um algoritmo, para chegar a um número ou preço. Este sistema leva em consideração o potencial de destruição ambiental de um negócio ou comércio, e o número calculado simboliza a correlação entre o dano à biodiversidade e o dano à margem de lucro desse negócio.
O documento intitulado “Exposição ao risco de Capital Natural”, financiado por um ministério alemão de “desenvolvimento” econômico, composto principalmente de jargão para potenciais investidores do setor agrícola, revela quanto do obstáculo para chegar a uma solução está nas atitudes de pessoas poderosas e não na evidência do problema. Em outras palavras, mais esclarecedor do que os dados do relatório é a cultura que permite que esses dados persistam numa direção apocalíptica.
Na página 79, sob o subtítulo Poluentes da Água, podemos ler que: “Para valorar os impactos sobre a biodiversidade, um estudo deve definir a biodiversidade, quantificar as perdas de biodiversidade por emissões de substâncias tóxicas por meio de modelos de dispersão e deposição e, em seguida, atribuir um valor monetário a essas perdas”.
Esse estudo resulta em, por exemplo, uma fórmula que estima “o custo monetário por quilograma de substâncias tóxicas depositadas em ambientes de água doce”. A primeira variável é “disposição a pagar para restaurar”, baseada na “riqueza de espécies” da área. Portanto, o “grau” de biodiversidade de uma área influenciará o preço associado à sua potencial destruição. Não é tanto uma questão de saber se o dano está sendo causado e o seu escopo, para que possamos minimizá-lo. É uma questão de quanto estamos dispostos a pagar para continuar destruindo.
Capital natural é beco sem saída?
Quantificar e colocar um valor monetário no contexto da perda de biodiversidade e da saúde humana é bastante revelador das atitudes em relação ao assunto em questão. Embora essa linguagem possa ter sido desenvolvida com o intuito de comunicar o custo dos danos ambientais de forma que a indústria possa entender as perdas financeiras em não preservá-las, o resultado acaba sendo a utilização de tempo e recursos para nos levar a um beco sem saída.
Como conceito, o 'Capital' Natural é contrário ao que ambientalistas vêm tentando alcançar há décadas, e é, também, contrário à natureza do capital. Se não bastassem os intermináveis debates entre líderes mundiais e acordos globais fracassados, uma quantificação do custo de vidas está acontecendo por trás de pilhas de papéis e transações financeiras. O valor dessas vidas, tanto humanas quanto mais que humanas, é transformado em variáveis num algoritmo projetado para estimar seu custo para indústrias de bilhões de euros.
Na prática, os dados evidenciam que o ‘Capital Natural’ não funciona para minimizar os danos causados ao planeta e à saúde humana. ‘Comoditizar’ um problema causado pela comoditização é como tentar despoluir a água com substâncias tóxicas. Infelizmente, isso não é uma metáfora, realmente acontece. A Agência Pública revelou que mais de 700 cidades brasileiras possuem águas com níveis de toxicidade acima dos limites legais, que são consideravelmente superiores aos limites europeus. Mais da metade desses contaminantes, que incluem substâncias radioativas, pesticidas, matéria orgânica e inorgânica, são subprodutos do tratamento de água.
Para aqueles que optam por legumes e frutas orgânicas ou veem o valor deles para a saúde, o tratamento da água está além do escopo de influência individual. Lavar uma maçã antes de mordê-la pode piorar o problema. A fiscalização da qualidade da água por instituições governamentais é fraca e, se os testes forem feitos, os resultados muitas vezes são ocultados do público. Assim, a população é negada não só água limpa, mas também informações sobre essa água. Ao mesmo tempo, ter acesso a essas informações está longe de ser suficiente para induzir mudanças.
Quando e se pessoas influentes no setor agrícola optarem por implementar algoritmos de “Capital Natural” para atribuir um preço ao seu potencial de destruição ambiental, talvez elas estejam dispostas a aceitar o risco porque sabem que são os agricultores que pagam o maior preço. Aqueles que estão adoecendo e morrendo agora não são os que analisam os relatórios de avaliação de risco e aprovam esses projetos. Nem todos nós temos o poder de direcionar as agroindústrias multinacionais para uma direção mais sustentável, mas todos nós estamos pagando pelos danos que elas causam em algum nível. O que podemos fazer é não perder tempo e energia tentando adotar a linguagem de quem entende muito bem a nossa, mas opta por não ouvir.
Texto por Mirna Wabi Sabi
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