Escrito por Mirna Wabi-Sabi e fotografado por Fabio Teixeira.
Lula venceu as eleições presidenciais este ano, mas os partidários de Bolsonaro estão nas ruas exigindo “intervenção federal” para impedir a “instalação do comunismo” no país. Hoje, porém, Lula defende uma economia mista, e os principais argumentos contra ele são que ele é corrupto, e que vai fomentar o crime organizado e o caos. O comunismo aqui é usado como cortina de fumaça para esconder fantasias de retorno da ditadura militar e de genocídio de pobres e negros – a demografia que Lula busca incluir na economia de mercado.
Após questionar os resultados das eleições, Gustavo Gayer, político, influenciador e youtuber, removeu vários vídeos que postou semana passada no YouTube, e teve sua conta no Twitter suspensa. No vídeo chamado “Urgente! Eleitores do LULA já começaram a aterrorizar o Brasil. Cenas fortes”, a cena mais forte, segundo ele, foi a gravação de uma mulher de um prédio sendo invadido do outro lado da rua de seu apartamento, onde ela estava claramente aterrorizada. Gayer deixa de indicar o contexto de tal invasão, como é costume em seu trabalho. Ele já foi condenado por propagar Fake News duas vezes este ano, ambas envolvendo outros políticos e políticas públicas durante a pandemia de Covid-19.
O que o eleitorado brasileiro considera aterrorizante está no cerne da polarização política que estamos presenciando. Enquanto uma moradora (representando ideologicamente cerca de metade da população votante brasileira) fica horrorizada ao ver um grande grupo de pessoas pobres invadir um prédio e colocar lona nas janelas – a outra metade fica horrorizada ao ver miséria generalizada e falta de moradia.
A ocupação deste prédio em especial foi obra de um grupo chamado Frente de Luta por Moradia – FLM, que existe há 2 décadas e defende o direito à moradia digna em São Paulo. O prédio estava vazio, ninguém foi agredido ou retirado de sua casa além dos próprios ocupantes. E o grupo publicou um ofício do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmando que a polícia é quem age criminalmente se 1) impõe violência física ou psicológica contra os ocupantes, 2) restringe o acesso à água, comida, eletricidade, advogados e defensores públicos.
O que justifica um comportamento criminoso parece ser o ponto de discórdia aqui, e não uma postura anticrime por cidadãos cristãos de bem, em face de comunistas criminosos e profanos. A divulgação de fake news e brutalidade policial, embora ilegal, é tolerada ou até mesmo aplaudida pelos apoiadores de Bolsonaro, enquanto a luta por moradia digna é descrita da seguinte forma:
“O crime venceu. A nossa vida será um inferno. O homicídio vai aumentar. O tráfico [de drogas] vai aumentar. Os criminosos vão reinar. Mesmo porque o chefe deles agora senta, sentará, na cadeira presidencial. O Brasil não é um lugar mais amigável para pessoas de bem, pessoas patriotas, cristãs... Eu não sei mais o que falar. Eles conseguiram e vão destruir o nosso país.” — Gustavo Gayer, no vídeo (desde então removido), “Urgente! Eleitores do LULA já começaram a aterrorizar o Brasil. Cenas fortes” no YouTube. Do dia 31 de outubro, com 462 mil visualizações em 6 horas.
Num artigo recente de Eduardo Barbosa intitulado “Entre balas e garimpos: a vida de povos indígenas e negros favelados sob o estado de exceção”, essa tolerância a certas condutas criminosas dos defensores do Estado de Direito é descrita como um Estado de Exceção. O regime de Bolsonaro é, ou foi, uma extensão e exacerbação de décadas de “políticas perversas” que decretaram “recorrentes chacinas em favelas e o extermínio em série dos povos originários”. Essas demografias são um alvo porque minam o poder que o Estado tem sobre determinados territórios. Nesse sentido, eles são uma ameaça ao Estado, e o desejo de erradicá-los supera a retórica cumpridora da lei do patriota e se torna um mecanismo estabelecido.
Há uma classe massiva de brasileiros que sentem repulsa aos pobres e marginalizados. Essa classe pode pensar em maneiras de tirar as pessoas da pobreza com incentivos econômicos e caridade, enquanto outros defendem a erradicação literal, pelo cano de uma arma. Há muito a ser questionado sobre o uso de ferramentas capitalistas para resolver um problema que o capitalismo não apenas cria, mas precisa para prosperar – a disparidade de classe. O apoio ao assassinato em massa, no entanto, é intragável, é o abismo intransponível na paisagem política binária em que estamos vivendo.
Lula será incapaz de erradicar sozinho o ódio da nação aos pobres, ou mudar o curso da humanidade para longe do desespero econômico e do colapso global.
As expectativas de seu potencial de mudança são altas, mas irreais. O que precisamos é de uma mudança de cultura. A narrativa normalizada por Bolsonaro foi rejeitada não apenas pelo eleitorado brasileiro, mas também pelas comunidades internacionais. Ainda assim, a vitória foi estreita, e os apoiadores têm convicções firmes de ambos os lados. Nesse sentido, a urna não é um instrumento que produz legitimidade. Legitimidade e dignidade são ideais que precisamos defender e lutar para conquistar todos os dias, não apenas a cada 4 anos.
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