Artigo publicado na Le Monde Diplomatique Brasil.
FOTOS: Manifestação por Justiça no caso Moïse Kabagambe na Barra, Rio de Janeiro (Crédito Fabio Teixeira)
Sábado, 5 de fevereiro, manifestantes foram às ruas de grandes cidades brasileiras pedindo Justiça. Um jovem africano foi linchado – torturado até a morte – em uma praia no Rio de Janeiro. Os perpetradores, também pessoas trabalhadoras, estão sob custódia e alegam que não houve intenção de matar; que eles estavam reagindo ao comportamento errático e irresponsável do imigrante. A família da vítima, por outro lado, alega que ele só estava pedindo para ser remunerado por dois dias de trabalho. Nenhuma narrativa, no entanto, justifica o que aconteceu, uma barbárie que foi filmada em vídeo. A prisão dos homens que amarraram outro homem e o espancaram é o que consideramos Justiça?
Moïse Kabagambe
foi um refugiado congolês que morou no Brasil uma década. Na praia onde foi brutalmente assassinado, era conhecido como “angolano”. Isso é como apelidar um estadunidense de “mexicano” ou um brasileiro de “venezuelano”, porque são países vizinhos no mesmo continente. A falta de entendimento de sua comunidade sobre as circunstâncias que o trouxeram ao Brasil em primeiro lugar já é uma injustiça – que não será revertida com a prisão de ninguém.
Em 2008, a Segunda Guerra do Congo, que começou em 1998, matou mais de 5 milhões de pessoas e é considerada a mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial. A primeira aconteceu logo antes, também na década de 1990, e foi resultado direto de forças coloniais e imperialistas se intrometendo com líderes africanos e explorando as diferenças étnicas na região. O Zaire, que hoje é conhecido como República Democrática do Congo, foi feito de corda em cabo de guerra entre forças comunistas e anticomunistas, até a dissolução da URSS e do interesse dos EUA em endossar seu líder.
Moïse nasceu no ano em que uma guerra terminou e outra começou, um período em que mais de 5 milhões de crianças não receberam educação devido à turbulência política – os níveis de alfabetização estavam em seu nível mais baixo e o trabalho infantil e a exploração em seus níveis mais altos. Ao longo de sua juventude, seu país esteve sob uma operação das Nações Unidas de “manutenção da paz” (Monusco), que fez mais para criar uma indústria clandestina de armas do que evitar conflitos. Entre os países envolvidos nessa operação estava o Brasil, com seus militares e policiais. Hoje, um general brasileiro é Comandante da Força da Monusco, e é o quarto comandante do Brasil a ocupar o cargo, tornando-o o país mais representado no projeto em termos de liderança.
Muito antes de tudo isso, a região do Congo já havia passado por atrocidades sob o regime belga e sua indústria da borracha. Na virada do século passado, entre a última década de 1800 e a primeira de 1900, africanos sob o regime colonial do rei belga foram escravizados, mutilados e mortos a taxas bárbaras. Fome, doenças e exploração perpetuada pelo colonialismo e suas indústrias com fins lucrativos foram responsáveis pela morte de mais da metade da população local; incontáveis vidas. Mas a intromissão estrangeira não é tudo o que há a se dizer sobre este país da África Central.
(Crédito Fabio Teixeira)
Cultura e resistência
Apesar do incessante oportunismo geopolítico, o Congo sobreviveu geograficamente e prosperou culturalmente. De acordo com o WWF, “a Bacia do Congo é habitada por humanos há mais de 50.000 anos e fornece comida, água fresca e abrigo para mais de 75 milhões de pessoas”. O rio Congo é o maior em volume depois do rio Amazonas. Sua floresta tropical também é a maior depois da Amazônia. Como pessoas brasileiras, nossa paixão pela preservação do nosso bem mais magnífico e precioso deve ser estendida ao nosso vizinho ecológico, já que, juntos, nossos países são os detentores das mais “importantes áreas selvagens que restam na Terra”.
Música e literatura congolesa também encontram na expressão artística uma ferramenta de autoestima e poder. Kolinga, um grupo congolês, hoje faz hinos feministas decoloniais. No século passado, hits de soukous e rumba congolesa tornaram-se clássicos internacionais, bem representados na compilação Congo Revolution “Revolutionary and Evolutionary Sounds From The Two Congos 1955-62”. A literatura, que merece tradução e distribuição ampla, é ainda mais comovente e representativa da maré artística da nação. O poema “Segunda Dimensão” do escritor congolês Rais Neza Boneza, em seu livro “Nômade, sons do exílio”, é particularmente perspicaz, talvez até especificamente para a situação de Moïse e sua comunidade imigrante no Brasil. Que ele fale por si:
Perto de sua mesa está um copo de água;
Pela janela ele olha para o transeunte:
Ele observa e sempre espera, espera, espera.
A amargura nutre seu ser;
Sujeito a mal-entendidos
E falsos ares de ‘gente’
Ele é um prisioneiro.
Ele se senta, as mãos em volta do queixo
Pensando solenemente
Em seus sonhos, seus espíritos escapam
O mundo das dificuldades
E viajar nas extensões do
Céu azul selvagem
Ele se inclina sobre a mesa, meio preocupado, meio satisfeito.
Neste lugar dele não há compaixão;
O mal ronda sua presa;
Rancor canta sua melodia da manhã,
Um estranho à sua terra,
Ele bebe melancolicamente de seu copo…
Um gole de liberdade.
Marginalizado e carente,
Muito longe está soprando para ele o vento da liberdade
Ele é um clandestino, sempre sem endereço,
Não um nômade, mas um recluso no meio da humanidade.
Em sua clausura de cristal imbatido*
Ele segue os ecos de seus gritos silenciosos.
Uma rocha de loucura, só a solidão lhe responde.
Ele se assusta!
Seu coração bate rápido!
Ele se levanta da cama!
Ah! É apenas um pesadelo!
Este é um pesadelo do qual Moïse Kabagambe e sua família não vão acordar, nem a diáspora africana será protegida da desumanidade de tais atos. Mas podemos, como sociedade, começar a interpretar a Justiça como um conceito abrangente – não apenas como algo que o sistema judicial pode fornecer. Justiça significa ver, respeitar e apreciar o valor de acolher pessoas diferentes de nós em nossas comunidades. Justiça significa fazer o que pudermos para aprender, entender e lutar contra um paradigma geopolítico alimentado pelo abuso e pela exploração (por exemplo, exigindo reparações). Justiça significa pensar, perguntar e sentir a Humanidade em todos nós.
Manifestação por Justiça no caso Moïse em São Paulo, MASP, 5 de fevereiro — Foto e vídeo, (Crédito Mirna Wabi-Sabi)
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*Nota de tradução: ‘Imbatido’ como o particípio passado de ‘imbatível’, do original ‘unbroken’.
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