Escrito por Mirna Wabi-Sabi
Fotografado por Fabio Teixeira
Série fotográfica: "Pessoas em situação de rua trabalham com o lixo reciclável e estão doentes", por Fabio Teixeira. 17 de maio, 2024. Zona Norte, Rio de Janeiro.
Um filósofo escocês uma vez escreveu: “Uma corrente não é mais forte do que o seu elo mais fraco”. Antes disso, os bascos provavelmente já haviam cunhado o provérbio “geralmente o fio quebra onde é mais fino”. Esse sentimento continua bem vivo hoje e perdura durante séculos por uma razão simples: a humanidade tem fraquezas.
Nesse alvorecer do terceiro milênio, após centenas de milhares de anos que seres humanos têm percorrido por esse belo planeta, é difícil olhar em volta e acreditar que temos utilizado as nossas habilidades para fortalecer os laços entre povos ou para engrossar o fio da nossa humanidade.
Para percorrer as ruas do Rio de Janeiro, considerada por muitos uma das cidades mais bonitas do mundo, qualquer pessoa com um coração deve desviar muitas vezes o olhar de coisas que o encherão de desespero. Poucas coisas refletem mais o repetido fracasso da humanidade em evoluir do que a falta de moradia. Numa época em que a riqueza e a tecnologia disparam, nunca foi tão claro que a pobreza extrema não se deve à falta de recursos disponíveis.
A população em situação de rua no Brasil tem crescido consistentemente nas últimas décadas, aproximando-se de 300 mil. No Rio, diz-se que há cerca de 8 mil pessoas vivendo nas ruas. Sempre aparecem manchetes com números impressionantes, “População em situação de rua cresce 211% na última década”, “Censo identifica 7.865 pessoas em situação de rua na cidade”, ‘Novo programa do governo dá assistência para pessoas em situação de rua’. Mas pesquisar além das manchetes e envolver-se pessoalmente com os assuntos revela uma história diferente.
Em primeiro lugar, nem metade dos municípios brasileiros contabiliza o número de pessoas que estão desabrigadas em suas comunidades. Isso significa que os números são alarmantemente imprecisos. Mesmo os órgãos dedicados a prestar serviços às populações desabrigadas do Rio de Janeiro, governamentais ou independentes, que estão localizados em áreas da cidade conhecidas por terem grandes concentrações delas trabalhando ou se estabelecendo, não têm ideia significativa dos números, localizações ou doenças de pessoas que eles se propuseram a servir.
No entorno da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, é sabido que grupos de pessoas desabrigadas se reúnem, muitas vezes para separar resíduos domésticos e industriais. O fotojornalista Fabio Teixeira documentou alguns dos trabalhos que essas pessoas, que preferem permanecer anônimas, têm feito, bem como alguns dos não surpreendentes problemas de saúde que decorrem desse paradigma. Especificamente, observou-se que iniciativas informais de reciclagem, realizadas por pessoas sem acesso consistente à privacidade, água corrente e saneamento básico, geram a uma epidemia de infecções nos olhos. Ao perceberem que estão perdendo a visão, elas ajudam umas as outras com os recursos disponíveis.
Os abrigos financiados pelo município não estão autorizados a falar diretamente com a imprensa. Toda comunicação deve passar pela assessoria de imprensa da prefeitura ou pela assessoria de imprensa do ministério da saúde. Esse escritório tem respostas prontas com números sobre o alcance do mais novo programa governamental voltado para a “ressocialização da população em situação de rua”. Esses programas envolvem o envio de profissionais de enfermagem, psicologia e assistência social para as “ruas”. Essa é a abordagem onde se acredita que, se a mente e o corpo dessas pessoas forem tratados, naturalmente, elas conseguirão se reinserir na sociedade, conseguindo emprego e moradia. A realidade, porém, mostrou que estar na rua é o que causa a grande maioria das doenças psicológicas e físicas na comunidade, e não o contrário. Portanto, a única forma de resolver com sucesso estes problemas de saúde é, em primeiro lugar, fornecer habitação.
“As principais questões de saúde diagnosticadas pelas equipes de Consultório na Rua são as infecções sexualmente transmissíveis como sífilis, HIV, hepatites virais, questões relacionadas ao sofrimento em saúde mental e ao uso de drogas, hipertensão arterial, tuberculose, feridas crônicas, entre outras. E as principais situações que interferem diretamente nas condições de saúde dessas pessoas são a insegurança alimentar, dificuldade de acesso a água potável, privação do sono, exposição ao calor, ao frio ou a chuva.” (Ascom)
Por “interferem diretamente” eles querem dizer “causam”. O fato de não ter casa é a principal causa desses problemas de saúde, no entanto, a solução permanece: tratar os sintomas à medida que eles são encontrados nas ruas.
As iniciativas financiadas de forma independente, as ONGs, estão ainda menos equipadas para abordar a raiz do problema. Uma organização dedicada à “reinserção social de pessoas em situação de rua” no centro da cidade do Rio descreveu sua maior conquista como: existir há 8 anos e uma vez ter ganhado um prêmio. Dizem que o seu maior obstáculo é a “captação de recursos”, em vez do que eles precisam de dinheiro para alcançar. Esses desastres de comunicação podem ser indicativos de uma verdade horrível, não sobre as pessoas desabrigadas, mas sobre os abrigados. Nossas cidades têm seres humanos que estão desprotegidos pela humanidade.
A Secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro precisa especificar que ela não está legalmente autorizada a se envolver na “remoção” de uma pessoa sem-teto, e isso diz muito sobre os tipos de solicitações que ela recebe do público em geral. Enquanto grande parte da população alojada aborde a falta de moradia como se fosse uma questão de gestão de lixo, aqueles que trabalham na área de serviço social demonstram uma compreensão superficial da realidade que tantos brasileiros em extrema pobreza enfrentam. Abordar o atendimento a pessoas desabrigadas como um projeto de “ressocialização” implica que o que elas precisam é aprender certos comportamentos para se reinserirem à sociedade. Na realidade, os desabrigados nunca se retiraram da sociedade, eles são o elo mais vulnerável dela.
As populações desabrigadas e abrigadas não apenas compartilham espaços nas cidades, mas estão intrinsecamente ligadas através da forma como a nossa sociedade tem funcionado. A inacessibilidade da habitação está diretamente ligada ao setor imobiliário e a todos os que com ela se envolvem para se alojar. Quanto mais a nossa sociedade encarar lares como uma oportunidade de investimento financeiro, em oposição a uma necessidade humana básica nos dias de hoje, mais crescerá a população sem habitação.
A única razão pela qual isso não é suficiente para provocar uma mudança nesse sistema é porque nós, a população abrigada, nos convencemos de que os desabrigados são um problema causado por eles mesmos e pelos seus comportamentos e escolhas de vida. Após uma autoinspeção mais aprofundada, grande parte da população alojada perceberia quantos momentos das nossas vidas são passados a trabalhar ou a pensar em trabalhar para manter um teto sobre as nossas cabeças, com exceção daqueles que nasceram numa riqueza notável.
Embora nós como indivíduos possamos não ser capazes de resolver sozinhos a questão da habitação nas nossas comunidades, a nossa sociedade como um todo, os seus valores e os seus recursos, certamente é capaz de o fazer. Isso exigirá uma mudança de perspectiva de longo prazo e em grande escala. Entretanto, o mínimo que podemos fazer como indivíduos hoje é separar resíduos orgânicos para compostagem e lavar os nossos resíduos domésticos inorgânicos para prevenir infecções nas pessoas que nos prestam o serviço informal de reciclagem.
Os elos mais fracos nessa cadeia de povos da humanidade são talvez os valores meritocráticos e individualistas das populações abrigadas no capitalismo tardio – um elo que lava as mãos de quaisquer laços humanos com a população desabrigada. Da próxima vez que nos perguntarmos, a população em situação de rua “é responsabilidade de quem?” A resposta é: de todo mundo. Só então o fio tênue da nossa humanidade se engrossará.
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