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Mirna Wabi-Sabi

Políticas de armas no Brasil imitam as dos EUA, mas têm maiores divisões de classe

Atualizado: 21 de out. de 2023

Originalmente publicado na OpenDemocracy

Implementar um princípio político estrangeiro sobre armas pode acentuar ainda mais as desigualdades econômicas.

O ano de 2021 foi marcado por incentivos legais do governo Bolsonaro para afrouxar as restrições à posse e porte de armas no Brasil. Em um esforço para imitar a abordagem dos Estados Unidos em relação às armas, o presidente fez sua campanha eleitoral nessa plataforma, popularizando o gesto de arminha com as mãos e, eventualmente, introduzindo 30 decretos sobre o assunto. Dos decretos de flexibilização do “registro e aquisição de armas e munições por caçadores, colecionadores e atiradores” (entre outras coisas), alguns depois enfrentaram resistência do Senado. Essa resistência não surpreende, pois, segundo um censo de 2019 (seu primeiro ano no cargo), a maioria da população brasileira discordava fortemente da ideia de que o afrouxamento das leis de armas se traduziria em mais segurança pública.

Há também concordância entre pesquisadores e ONGs de que regulamentos frouxos em torno da posse e porte de armas exacerbarão a violência e incentivarão o comércio ilegal de armas já existente no país a crescer e baratear. O desvio das armas legais para a ilegalidade já era um problema antes desses decretos, com quase 20 mil armas nos 10 anos que antecederam 2016, quando o relatório foi publicado por uma comissão parlamentar de inquérito (CPI). Isso significa que popularizar a cultura das armas no Brasil não é combater o crime organizado, muito pelo contrário – vai aumentar sua oferta de armas.

O problema de implementar um princípio político dos Estados Unidos sobre armas no Brasil, além de nem mesmo funcionar em seu país de origem, é que a sociedade brasileira tem uma desigualdade econômica mais acentuada. Essa disparidade de classes está representada na demografia que se posiciona sobre a questão das armas.

De acordo com o relatório de 2019, “dos entrevistados que se disseram favoráveis à flexibilização da posse de arma de fogo, a maioria ganha mais de cinco salários-mínimos”. Enquanto isso, “sete em cada dez moradores de periferias brasileiras discordaram da flexibilização da posse”. Em outras palavras, a grande maioria daqueles que apoiam o controle estrito de armas vive mais perto de onde o crime organizado opera. Enquanto uma parcela mais rica da população que pode se dar ao luxo de viver nos chamados bairros mais seguros tende a apoiar o afrouxamento das restrições.

Nos Estados Unidos, a questão da classe permeia o debate sobre o controle de armas de um lugar um pouco diferente. Um estudo de 2017 descreve “contratempos econômicos” como a principal fonte de apego emocional à posse de armas, um direito que já é amplamente concedido no país. Isso significa que, nos EUA, a insegurança financeira pode motivar a posse de armas – como fonte de empoderamento.

A demografia dos brasileiros que ganham pelo menos cinco vezes mais que um salário-mínimo pode não estar tão distante da demografia dos Estados Unidos de pessoas que se sentem economicamente desprivilegiadas. O contexto social e histórico, no entanto, informa não apenas como essa demografia é descrita, mas também como esses indivíduos se descrevem. Alguém que se considera classe média alta no Brasil pode ser considerado classe média baixa nos Estados Unidos. No entanto, uma aversão à pobreza e aos pobres é um terreno comum.

Gênero e raça também marcam sentimentos em volta do controle de armas em ambos os países. Nos EUA, aqueles “que têm expectativas sobre o que significa ser um homem branco nos Estados Unidos hoje que não estão sendo atendidas” têm maior probabilidade de se interessar pela posse de armas. No Brasil, raça é mais difícil de dicotomizar devido a uma história colonial que encorajou a miscigenação em oposição à segregação. No entanto, raça tende a seguir as linhas de classe, uma vez que os brasileiros negros representam mais de 70% do segmento mais pobre da população, e os brancos representam 70% dos mais ricos. Considerando esses números, deve-se notar que, em ambos os países, pessoas negras e pobres são mais propensas a se tornarem vítimas de violência armada.

Outra grande preocupação com o afrouxamento das leis sobre armas, talvez mais no Brasil do que nos Estados Unidos, é o potencial de aumento do feminicídio. “O termo ‘feminicídio’ foi particularmente adotado na América Latina”, mas isso não significa que seja mais difundido nessa região. O nível chocante de violência contra as mulheres no Brasil é resultado direto do fato de que houve um esforço para nomear a questão. Nos Estados Unidos, categorizar os feminicídios como qualquer outro homicídio pode mascarar o fato de que 92% deles são perpetrados por homens que as mulheres conheciam. A apreensão em afirmar que esses homicídios aconteceram porque essas vítimas são mulheres não muda o fato de que a maioria dos agressores são seus namorados ou maridos. Também não muda o fato de que “a pobreza está associada ao abuso doméstico”. Tornar mais fácil a posse de armas e mantê-las nas casas de famílias provavelmente exacerbará a questão já existente da violência doméstica e a vulnerabilidade das mulheres que enfrentam insegurança financeira.

Para cada situação em que uma arma pode ser usada para proteger uma família de um assalto, existem várias outras situações em que essa arma pode ser usada para infligir danos irreparáveis a essa mesma família, seja inflamando a violência doméstica, a expansão do comércio ilegal de armas por organizações criminosas, ou pela vitimização desproporcional de famílias marginalizadas.

Aviso de gatilho — as fotos abaixo são perturbadoras e mostram a morte.

Operação da Polícia Militar e Civil, em 21 de julho, deixa 19 mortos no Complexo do Alemão |

Fabio Teixeira

O papel da polícia

As operações policiais nas periferias brasileiras são notoriamente mortais, e os mortos muitas vezes não estão envolvidos em atividades criminosas. Eles estão apenas no lugar errado na hora errada. Se as instituições de aplicação da lei fossem excelentes em exercer seu trabalho, não haveria necessidade de o Estado transferir a responsabilidade de fornecer segurança aos civis. No entanto, o incentivo de Bolsonaro ao uso da força, à violência, repercute bem com os policiais militares – que muitas vezes se tornam seus ávidos apoiadores. Como coloca um pesquisador de segurança pública, para um indivíduo apoiar um político que incentiva amadores a assumir um papel que é de sua responsabilidade profissional é uma "questão meramente ideológica, não prática". Essa ideologia, que vagamente significa valores familiares tradicionais, princípios religiosos e papéis de gênero conservadores, não tem nenhuma influência prática na redução das taxas de crimes violentos, no combate ao crime organizado ou na proteção das famílias em suas casas.

No mês passado, cerca de 20 pessoas foram mortas em um tiroteio entre policiais e supostos traficantes de drogas no Complexo do Alemão. Menos da metade dos mortos tinha antecedentes criminais, pelo menos dois deles não eram suspeitos e um era policial. Este cenário é recorrente; um relatório recente da UFF, financiado pela fundação política alemã Heinrich Böll, afirma que entre 2007 e 2021, “foram realizadas 17.929 operações pela polícia no Rio de Janeiro. Desse total, 593 operações policiais resultaram em massacres, totalizando 2.374 mortes.” Não há evidências que demonstrem que essas operações tenham sido eficazes no combate ou impedimento das organizações do crime organizado, mas certamente elas foram eficazes em sustentar um reinado prolongado de terror em comunidades marginalizadas.

A única coisa com a qual todos parecem concordar é que a desigualdade econômica está se tornando progressivamente intolerável. A pobreza, o crime e a necessidade de uma sociedade mais segura são preocupações que possivelmente transcendem todas essas divisões ideológicas. A questão é quais são os passos práticos para melhorar uma condição social que leva à violência brutal de norte a sul do globo. A solução poderia ser mais armas ou mais dignidade humana?

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Mirna Wabi-sabi

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