É difícil trazer um olhar crítico para uma figura tão respeitada no mundo do ativismo artístico, político e ambiental. As pessoas são complexas e, portanto, também são suas produções artísticas. Acredito que o trabalho de Sebastião Salgado existe em algum lugar entre o benéfico e o nocivo.
Por Mirna Wabi-Sabi, originalmente publicado na Le Monde Diplomatique.
Uma seleção do trabalho de Sebastião Salgado está à mostra no Museu do Amanhã com fotos em preto e branco da Amazônia e de povos indígenas da região.
A habilidade artística e profissional do fotógrafo é inegável, assim como a curadoria de sua esposa, Lélia Wanick Salgado, motivos pelos quais a avassaladora maioria da reação pública a essa exposição é positiva. Como um ícone da proteção ambiental, e um ativista esquerdista desde a Ditadura, Salgado é admirado em todo o mundo. Mas, ao ver a exposição, não pude conter o profundo incômodo com a exotização e, em alguns casos, erotização de pessoas indígenas, com textos descabidos, cheios de meias verdades que tentam contextualizar essas fotos. Tudo isso me fez desejar que ele tivesse investido estritamente em registrar as paisagens, que são magníficas, e evitado fundir pessoas nativas com plantas, aves e macacos.
Por um tempo pensei que era a única sentindo esse desconforto, até que achei uma pesquisa de Marcelo Messina e Teresa Di Somma, de 2018, que relata exatamente o problema—“a lógica enervante do colonialismo”.
“Além de silenciar as histórias de violências perpetrados por colonizadores europeus contra os indígenas, camuflando-as sob intercâmbios amigáveis entre utensílios e mulheres, Salgado se conecta visualmente a essas histórias de violência, reproduzindo-as simbolicamente.”
Os textos de explicação na exposição de fato deturpam a realidade através do silenciamento. O militar Cândido Rondon é descrito como o “maior protetor de indígenas do Brasil”, silenciando inúmeras pessoas indígenas que lutaram por gerações para protegerem a si mesmos. Ao falar do marechal dessa forma, também é silenciada a verdade não só sobre a violência contra indígenas perpetrada pela instituição militar da qual ele fazia parte, mas também a corrupção e abuso nas instituições de proteção que ele mesmo fundou. Muitos dizem que era um protetor dos indígenas, mas também devem reconhecer que proteção para ele significava assimilação à sociedade brasileira neocolonial.
Nesse mesmo parágrafo sobre Rondon, o estilo de vida indígena é descrito como “bucólico”, e acredito que essa palavra represente o tipo de romantismo que confundimos com respeito. ‘Relativo ao campo’ coloca povos indígenas em contraponto à vida urbana, industrializada. Quando glorificamos a conexão nativa com a natureza, confundimos a exotização com a apreciação, pois simplificamos ao romantizar, e também infantilizamos ao reduzir povos milenares a categorias de ‘puros’ e ‘ingênuos’.
Não há nada de ingênuo no legado cultural dos povos indígenas amazônicos, há ingenuidade em nós quando criamos essa dicotomia entre a vida em conexão com a natureza e a vida cristã industrializada. A religião é silenciada nos textos, quando a espiritualidade indígena é narrada como uma anedota, enquanto o olhar cristão permeia todas as leituras implicitamente. No texto sobre os Suruwahá, diz-se que lá há altos índices de suicídio como um sintoma da mitologia. Acreditam em “três céus”, o melhor deles para aqueles que morrem no momento de maior vigor em vida. Só o uso da palavra “suicídio” já é uma leitura ocidental, e cristã, sobre a prática da “morte ritual”. De acordo com Kariny Teixeira De Souza e Márcio Martins Dos Santos, na pesquisa “Morte ritual: Reflexões Sobreo “suicídio” suruwaha”, de 2009, “práticas culturais, como, por exemplo, a morte ritual aqui abordada, incompreendidas pelas concepções “ocidentais” e, num certo sentido, cristãs, vigentes em nossa sociedade, alimentam nosso imaginário e assim julgamos ver, bem diante de nós, seres desprovidos de humanidade e sentido”.
A palavra suicídio pode sim ser usada ao descrever uma questão séria de saúde pública entre povos indígenas, como resultado da violência psíquica sistêmica de centenas de anos. “Os principais fatores de risco para o suicídio [citados em 111 estudos sobre 7 etnias indígenas brasileiras] foram pobreza, fatores históricos e culturais, baixos indicadores de bem estar, desintegração das famílias, vulnerabilidade social e falta de sentido de vida e futuro”, diz um trecho da Revisão Sistemática de 2020 da Organização Mundial de Saúde.
Mitologia e espiritualidade não são fatores em índices de suicídio em povos indígenas, afirmar tal coisa é uma descontextualização da realidade, e para qual fim?
Essa pergunta nos traz de volta à pesquisa de Marcelo Messina e Teresa Di Somma – a lógica do colonialismo é enervante porque goza em suas “histórias de violência”, ele é perverso. No caso de Salgado, esse desejo é camuflado em imagens atraentes que enquadram a nudez, especialmente a feminina, como pura e ingênua. Alguns argumentam que a sexualização dessa nudez acontece no olhar da audiência, não do fotógrafo, mas há escolhas artísticas que Salgado fez nas quais a sexualização é evidente (note a Figura 1 da pesquisa).
Em muitos dos retratos, homens são enquadrados de ombro pra cima, e as mulheres são fotografadas com seios expostos. Essa escolha pode acontecer para dar ênfase nas diferenças entre nós e eles, e a nudez dos seios femininos é uma diferença. Isso em si já seria problemático, porque o destaque na diferença exotiza e objetifica. A erotização acontece possivelmente no olhar do fotografo e da audiência, mas certamente no silenciamento da história de violência sexual sofrida por meninas e mulheres indígenas por séculos.
Em nenhum momento a história de violência sexual é abordada nos textos na exposição, mas em muitos momentos a nudez é romantizada. O Brasil sofreu por centenas de anos com uma “limpeza étnica” que instrumentalizada o estupro, o nu feminino era lido como animalesco e desumano. E essa realidade ainda não foi resolvida. “Salgado [se dispõe] do corpo dos sujeitos fotografados, a ponto de coisificar e sexualizar”, e ao contextualizar seu trabalho, falha em apontar que o estupro foi uma ferramenta de genocídio, e que mulheres indígenas ainda hoje sofrem com os resquícios dessa ferramenta.
É difícil trazer um olhar crítico para uma figura tão respeitada no mundo do ativismo artístico, político e ambiental. As pessoas são complexas e, portanto, também são suas produções artísticas. Na era das mídias sociais e do cancelamento, é preciso resgatar a nuança e a complexidade das coisas que existem entre o bem e o mal, entre o suposto certo e errado. Acredito que o trabalho de Sebastião Salgado existe em algum lugar entre o benéfico e o nocivo.
Houve certos resultados positivos, não só de seu trabalho em favor da proteção ambiental, mas também de obras que mobilizam pessoas a terem empatia e carinho por povos ameaçados e florestas à beira da destruição. Porém, essa não é toda a história. Há muita coisa importante não dita, o que gera repercussões contraproducentes e perniciosas. Quando nos propomos ter um olhar crítico à violência de estado contra a natureza e os povos indígenas, esse olhar crítico não pode ser seletivo, porque se for, não avançamos da forma que precisamos urgentemente avançar. Há espaço para o que é belo? Há. Mas não às custas da consciência sobre a brutalidade da realidade em que vivemos.
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