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Por que ler Tudo Que É Sagrado É Profanado

Atualizado: 2 de nov. de 2023

Por Thiago Sá
Tudo Que É Sagrado É Profanado

Talvez a melhor maneira de escrever algo sobre Tudo que é sagrado é profanado – uma introdução pagã ao marxismo e sobre a experiência de lê-lo e de traduzi-lo seja citando um trecho em que minha própria relação com o livro foi profundamente definida: o momento, diferente para cada pessoa, do “ah, então é isso”! Para mim, esse momento-chave é a perseguição entre Ceridwen e Taliesin, pois é aí, nas transformações e contradições constantes entre os dois personagens, que o autor demonstra toda a força do materialismo histórico-dialético na (re)construção de uma relação de mundo novamente encantada, porém jamais alienada.


As contradições do próprio Capital parecem aproximar-se cada vez mais do seu limite. Entre uma pandemia de proporções históricas inéditas e o acirramento de uma crise econômica que vem se arrastando desde 2008, parece difícil acreditar que uma “normalidade”, mesmo a normalidade assassina do próprio Capitalismo, possa ser recuperada. No entanto, e isso é algo em que precisamos pensar, e pensar de maneira coletiva, esse limite das contradições do Capital lhe são agora impostas sobretudo por todas as cadeias vivas de seres não-humanos, de tudo aquilo que o nosso mundo moderno se acostumou a chamar de “Natureza” e que o capitalismo expropriou e segue tentando expropriar.


Na realidade, se existe algo que uma perspectiva animista, “pagã”, pode nos oferecer, e esse é o objetivo também desse livro, é a possibilidade de compreender o Capitalismo nas suas relações de exploração e expropriação como mais amplas do que apenas o mundo humano. O trabalho do geógrafo Jason W. Moore, por exemplo, aponta para a relação direta entre expropriação de povos indígenas e populações tradicionais e a própria destruição ambiental que a acompanha: a destruição da amazônia afeta a própria teia da vida local, da qual participam populações indígenas, plantas, pássaros, onças e espíritos – mesmo que estes últimos venham ao nosso conhecimento apenas através dos próprios indígenas. O que se expropria e se explora, portanto, não se resume ao humano, e o humano não tem, necessariamente a centralidade desse sofrimento.


O ponto, claro, não é abrir um debate ou uma disputa para decidir “quem sofre mais”, se humanos ou não-humanos, se trabalhadores explorados ou se camponeses expropriados. O ponto, um ponto que o animismo nos ajuda a reconhecer, é tentar encontrar zonas fracas, contradições, nas violências do capitalismo não apenas contra nós, humanos urbanos, para que possamos tecer alianças contra um inimigo comum.


Além disso, este é um livro que busca fazer uma ligação extremamente necessária entre duas esferas da nossa existência que estão, há muitos séculos, artificialmente separadas: a da espiritualidade e a da nossa atuação política e social. Como se não bastasse uma certa influência perniciosa do protestantismo europeu, de enclausurar a experiência espiritual e religiosa no exclusivamente privado, doméstico e individual, ainda por cima parece que a modernidade está condenada há séculos a ser ou ateia ou cristã. Tudo aquilo que escapa a esses dois polos (que muitas vezes são indissociáveis, se percebermos que o humanismo ateu é a promessa da nova humanidade cristã realizada através da razão iluminista) é empurrado para as margens da razão e, por consequência, da nossa atuação política: é a religião dos “outros”, das “minorias”, dos “supersticiosos”, dos “ainda não esclarecidos”.


No entanto, acredito que o esforço em se falar de política, e especificamente de marxismo, através de termos pagãos nos relembra que, em primeiro lugar, espiritualidade ou religião não precisam ser restringidos estritamente ao “ser”: ser ateu, ser cristão, ser candomblecista, ser espírita etc – a questão não é colocar uma nova opção no cardápio da nossa espiritualidade moderna esburacada, mas sim se permitir considerar nossa atuação política e social também através da espiritualidade, mesmo que não seja a espiritualidade a qual estamos acostumados. Em segundo lugar, nos convida a considerar essas espiritualidades “estranhas” à racionalidade moderna como perspectivas de atuação, como armas para nosso fazer social, como lições valiosas à nossa existência concreta. Daí a importância de um mito irlandês antigo, no caso desse exemplo do livro que escolhi. Daí também, trazendo para nosso contexto brasileiro, ler e levar a sério a maneira como Davi Kopenawa, em A Queda do Céu, descreve a civilização capitalista: o povo da mercadoria, cujo pensamento foi esfumaçado pela fumaça da epidemia e do metal.


O convite que gostaria de fazer com esse livro, com essa tradução para o português de Tudo que é sagrado é profanado, é o de permitir que nossa crítica ao capitalismo e nossa atuação política aprendam também o que o animismo, o paganismo, a feitiçaria, a “superstição”, a macumba, enfim, tudo aquilo que foi marginalizado pela razão europeia tem a nos ensinar. No mínimo, porque nós, como trabalhadoras e trabalhadores, também fomos, por essa mesma razão, por essa mesma práxis, marginalizados.


No entanto, se os limites do Capital são alcançados antes por uma crise ambiental, uma pandemia ou um cataclisma climático, e não pela culminância da luta de classes, como se imaginava no início da civilização industrial do século XIX. E se nós, da classe trabalhadora, não soubermos aproveitar esse momento para nos organizarmos, nada garante que um futuro sem capitalismo seja um futuro sem classes, sem exploração. O capitalismo é também, ele mesmo, a forma historicamente atual da opressão, da exploração e da expropriação de uma maioria por uma minoria. Assim como já houve (e em muitos lugares, ainda há) escravidão, novas formas de exploração, que não dependam do trabalho assalariado, podem surgir se permitirmos que os atuais donos do poder sigam ilesos.



Tudo Que É Sagrado É Profanado

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